Já nasceram dois mil bebés após tratamentos de infertilidade no Hospital de Guimarães

A entrevista foi publicada na edição da passada quarta-feira do jornal O Comércio de Guimarães. Sofia Dantas, médica responsável pelo Centro de Procriação Medicamente Assistida do Hospital da Senhora da Oliveira de Guimarães, dá conta do trabalho que tem sido desenvolvido naquela unidade resultante da consulta de infertilidade.

 

O Comércio de Guimarães (CG) - Como nasceu o Centro de Procriação Medicamente Assistida e quem o procura?
Sofia Dantas (SD) - A consulta de infertilidade já funciona no Hospital da Senhora da Oliveira - Guimarães (HSOG) desde 1998, ano em que começaram a ser feitos aqui tratamentos de procriação medicamente assistida (PMA). Na altura, não tínhamos laboratório independente, os casais faziam aqui o estudo.

O aumento da afluência justificou a abertura de um laboratório em 2004, em que o Centro de Procriação Medicamente Assistida passou a funcionar de forma autónoma.

CG - Quem é que procura o Centro?
SD - No início, eram os casais heterosexuais com história de infertilidade, ou seja, que estavam um ano a tentar engravidar sem sucesso. Em 2017, houve um alargamento dos beneficiários e casais de mulheres ou mulheres solteiras podem aceder a tratamentos de PMA em qualquer centro público do País e ao nosso também.

CG - Quantas pessoas estão a ser acompanhadas?
SD - Existem várias fases neste processo: o estudo dos casais; e aqueles que passam para a fase de tratamentos. Dos vários tratamentos - fecundações in vitro, inseminações intra-uterinas, transferência de embriões congelados - fazemos entre 500 e 600 tratamentos por ano, isto pressupõe que serão 500 ou 600 casais ou não, porque há o caso de mulheres solteiras que, neste momento, ainda figuram em número reduzido.

CG - Como são orientados os utentes para chegarem a este serviço?
SD - A orientação deve ser feita pelo médico de família, porque ele pode efectuar o encaminhamento directo para esta consulta. A grande maioria dos casais é referenciada dessa forma. Qualquer outro médico que faça o estudo do casal pode também referenciar para esta consulta.
Este Centro também é de referência para tratamentos de todos os utentes que são beneficiários do Hospital de Braga e do Hospital de Vila Nova de Famalicão.

CG - A faixa etária dos utentes é a mesma de 1998 ou há alteração nesse padrão?
SD - A partir do momento em que surgiu a definição por lei da idade limite para os diferentes tratamentos não houve qualquer alteração. Existe uma idade limite para tratamento em relação à fecundação in vitro de 40 anos e uma idade limite para tratamento de inseminações intra-uterinas até aos 42 anos. O que tem mudado, e isso cria muitas dificuldades, é a idade que têm os membros do casal quando chegam à nossa consulta, ou seja, estão a chegar casais cada vez com mais idade e como temos lista de espera, tal condiciona a nossa capacidade de resposta para fazer os tratamentos. Cada casal pode fazer três tratamentos nos centros públicos e se nos chegarem mulheres com 38 ou 39 anos vai ser muito difícil fazer os três tratamentos.
A idade continua a ser o factor de maior importância, quer na gravidez espontânea quer na gravidez após tratamento. Por um lado, se a mulher engravidar em idade mais avançada faz com que diminua a probabilidade de engravidar e seja mais reduzida a acessibilidade ao número de tratamentos em centros públicos. Por outro lado, a taxa de sucesso após tratamento é muito diferente consoante a idade.
Antes dos 35 anos, as taxas de sucesso podem andar à volta dos 30 ou 40 por cento; uma mulher com 30 anos tem mais 5 por cento de hipótese de engravidar. Daí, a importância de uma referenciação cada vez mais precoce, embora hoje em dia as pessoas estejam mais alertadas para esta problemática da infertilidade e são os próprios casais ou utentes que investigam, enviam e-mails e nos procuram.

CG - Em 1998, existia algum tabu em torno das questões da infertilidade?
SD - Trabalho neste Centro desde 2000. Nota-se uma grande diferença nos utentes que nos procuram. A infertilidade é um problema do casal, mas há 20 anos quem vinha à consulta era sempre a mulher. O homem não fazia parte desta equação. Por isso, havia a ideia de que o problema da infertilidade era da mulher, tanto que nós ao longo dos anos insistimos dizendo que a consulta era do casal e a presença do marido era obrigatória, no fundo para envolvê-lo em todo este processo.
Depois, parecia estar generalizada a ideia de que ter filhos é um acontecimento natural e o facto de não conseguir as pessoas consideram isso um insucesso. A partilha com os familiares e amigos era nula e a vivência deste processo era difícil.
Hoje em dia, acho que isso está mais amenizado, há mais partilha, as redes sociais também ajudam, acabando por desanuviar a parte emocional. A infertilidade é considerada uma doença. Há uma forte carga emocional, mesmo no relacionamento entre o casal. É muito importante que isto seja vivido de uma forma mais amenizada e haja uma gestão tranquila de todo o processo.

CG - Nestes 22 anos de funcionamento, o perfil dos beneficiários deste tratamento também sofreu alterações até por força legal?
SD - No princípio, os casais tinham de comprovadamente viver em união de facto ou estarem casados. Hoje em dia, não se questiona o tipo de relacionamento. Temos os casais de mulheres e as mulheres solteiras. O grande problema para estes beneficiários é que estão dependentes do envio de gametas pelo Banco Público de Gametas. O Banco Público é no Centro Materno-Infantil do Norte e neste momento a lista de espera para o envio de gametas é de três anos. Isto é demasiado e, por isso, temos alguma dificuldade em gerir as expectativas destas beneficiárias, porque nós nem que queiramos fazer o tratamento estamos dependentes do envio de gametas para os casais de mulheres e também para casais heterosexuais que também vão fazer o tratamento com gametas de dador, ficando dependentes do envio de gametas do Banco Público que é a nível nacional.
Em Portugal, quem poderá, se quiser, ao completar os 18 anos, conhecer a sua identidade biológica é a criança que há-de nascer desse tratamento. Só ela e se quiser quando atingir a maioridade poderá conhecer a identidade biológica (não há qualquer estatuto legal, o dador não vai ser o pai).

CG - Têm acompanhado mulheres que aguardaram três anos para receberem os gametas de um dador?
SD - Temos casais heterossexuais, casais de mulheres e mulheres sozinhas que já fizeram o tratamento com gametas, quer masculinos, quer femininos.

CG - Qual é o tratamento predominante?
SD - O tratamento que fazemos em maior número é a fecundação in vitro (FIV) ou micro-injecção, porque a inseminação intra-uterina é um método um 'bocadinho' mais natural, só se estimula o ovário e põem-se os espermatozóides dentro do útero. Em termos proporcionais, iniciamos cerca de 300 ciclos de FIV e micro-injecção por ano, 150 inseminações e depois fazemos muitas transferências de embriões congelados que são resultantes de tratamentos, quando os casais não engravidam ou querem o segundo filho têm os embriões congelados.

CG - Há critérios para esses tratamentos?
SD - Quem já tem um filho após procriação medicamente assistida já não pode fazer mais tratamentos, só pode se tiver aqui embriões congelados, mas não pode originar mais embriões. Neste momento, são assim os critérios.

CG - Neste Centro, a ciência permite muitos 'milagres'?
SD - Há aqui uma satisfação imensa entre os profissionais, sendo muito forte o envolvimento com os utentes. É a sensação de que trabalhamos numa área onde se cria vida, onde se desperta a felicidade e a forma como os casais interagem connosco mostra que o que conseguimos fazer em conjunto, nós e eles, é vida. Esta é a área da medicina em que o desafio é criar vida. Mas há uma faceta desta missão que nos cria também muita pressão, porque se pensarmos que 30 por cento dos casais engravidam, há 70 por cento que não e isso para quem está aqui a trabalhar é... ter vontade de querer mais! Temos de lidar com a nossa frustração e com a gestão das expectativas dos casais. Não há ninguém que não venha à primeira consulta com a expectativa de êxito, mas é um balde água fria imenso quando tal não acontece.
Nesta área qualquer avanço científico é importantíssimo. As grandes inovações nos últimos anos estão mais centradas na componente laboratorial: melhores incubadoras, microscópios, meios de cultura dos embriões... Para uma mulher engravidar temos de ter um bom embrião, porque podemos prepará-la muito bem e ter um útero maravilhoso, mas se o embrião não for de qualidade ela não vai engravidar. E tudo o que se faz a nível internacional também se faz aqui.

CG - Quantas crianças já nasceram fruto do trabalho desenvolvido neste Centro?
SD - O número exacto não temos. Quando festejamos os 15 anos já tinham nascido mais de 500, mas já passaram mais de 10 anos e já fazemos muitos mais tratamentos. Por isso, cerca de 2 mil crianças já nasceram seguramente.

CG - Essas crianças regressam e mantêm laços com a equipa?
SD - A Covid-19 alterou comportamentos, porque antes era raro o casal que tinha o seu bebé e que depois não o vinha mostrar, trazendo até fotografias para a equipa. Agora telefonam e o contacto é diferente.

CG - O trabalho do Centro quando termina?
SD - A partir do momento em que se faz o tratamento e há a confirmação da gravidez. O nosso trabalho termina na primeira ecografia onde identificamos a presença do bebé. Depois, os utentes são encaminhados para as consultas nos hospitais da sua área de residência.
Porém, normalmente, não há casal que saia daqui sem saber o nome dos médicos, da equipa de enfermagem, dos embriologistas.

CG - Da parte dos utentes, sente que há uma vontade forte, partilhada, entre aqueles que se envolvem num tratamento para gerar um ser humano?
SD - Cada vez mais há esse envolvimento do casal, embora normalmente a mulher é que tem de fazer mais coisas, mais medicação, a colheita dos óvulos, e acaba por se envolver mais neste processo. Vêm cá mais vezes, fazem mais ecografias.

CG - O Centro também tem a missão de preservar a fertilidade?
SD - Somos um centro de procriação medicamente assistida, tratamos infertilidade, mas há uma dimensão que tem aumentado muito nos últimos anos que é a preservação da fertilidade em pessoas com doenças graves. Todos os doentes - homens ou mulheres - que vão ser submetidos a tratamentos quer cirúrgicos ou médicos que vão comprometer a qualidade dos seus gametas - óvulos ou espermatozóides - podem fazer aqui a preservação dos seus gametas. Por exemplo, uma jovem de 24 anos com cancro da mama que tenha de fazer quimioterapia, essa quimioterapia pode fazer com que ela entre em menopausa. Hoje em dia a sobrevivência às doenças oncológicas é cada vez maior, as pessoas sobrevivem cada vez mais a um cancro, mas temos de zelar pela qualidade de vida pós doença. Porque, essa jovem quando tiver 28 anos pode estar curada do seu cancro e tem de ter a possibilidade de ter os seus filhos e se não congelar ou crio-preservar os seus óvulos, isso pode não ser possível.
Fazemos com que homens ou mulheres que de outra forma não iriam ter filhos, possam alimentar essa vontade. Os homens que tenham de retirar os testículos se não fizerem crio-preservação de esperma nunca mais poderão ter filhos seus.
Temos muitos jovens a fazer preservação da fertilidade, o que é tão importante como o resto.
Neste domínio, há um potencial de crescimento em todo o lado, quer na procriação medicamente assistida porque a lista de espera é de um ano e não gostamos. Há sete anos era de seis meses.


Marcações: Hospital da Senhora da Oliveira, procriação médica assistida, consulta de infertilidade

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