Ocaso
o que transparece é que ela já atinge a essência do que temos sido. E sem querer qualificar o sentido dessa mutação em curso, por ela ser o resultado evolutivo duma consciência social que foi avançando, o que parece poder depreender-se é que o vetusto modelo patriarcal assumido ao longo de toda a nossa caminhada está, no mínimo, em crise e esta vai-se reflectindo em variadíssimos aspectos, da estrutura à hierarquia e daí até ao convívio mais comezinho.
Pode crer-se, portanto, que a “Europa”, como o todo que consistia na sua diversidade de particularidades e gradações, está em declínio de determinadas competências (mormente na literacia), ou pelo menos desacelerou nelas. Sendo que esta nominada “Europa” deve, e tem, que ser entendida como circunscrita espacialmente a um núcleo central e aderências que, no seu conjunto, abarcam, mais ou menos e no continente, aquele espaço que correspondeu aos limites máximos da expansão romana. E ainda, de certa maneira, os países escandinavos. Bem como, o que já estará subentendido, que a designação se reporta apenas à civilização aí desenvolvida.
Posto isto, passemos a atentar possíveis causas e nos efeitos desse modelo que, parece, nos está a abandonar.
Elas, as causas, podem advir da emergência da espécie. Isto porque, sem um qualquer suporte devidamente comprovado, pode-se pensar que as diferenças morfológicas de género nos humanos possibilitaram o predomínio do macho obre a fêmea, por força, ademais de outras, das suas características perante o processo reprodutivo. Isto porque na crida extrema crueza vivida nos vagidos do “sapiens”, e nas centenas de milénios posteriores, as mulheres, por elas, estariam total ou parcialmente incapacitadas durante largos períodos para participarem plenamente (em igualdade com as não grávidas ou, menos e também, nas não aleitantes) no quotidiano que lhes fosse imposto. Daí e pela natureza da reprodução sexuada, poder, do mesmo modo, deduzir-se a consequência, ab initio, da agregação e subsequente densificação dela.
Tudo porque a lógica primária que preside a todo, e qualquer, processo material massivo determina o prosseguimento consequente dele (da partícula ao átomo, deste ao elemento, à molécula, à célula, etc., etc,), numa cadeia ininterrupta e contínua de sucessiva complexização. Sequência que, nos animais, consiste na função procriadora, que é a suprema razão de o seu estar individualizável (como de forma lhana escreveu Aristóteles na sua “Política”, ao afirmar que “nas criaturas humanas, tal como nos outros animais e nas plantas, há um impulso natural no sentido de querer deixar depois de um indivíduo um outro ser da mesma espécie”). Desta compreensão e continuando-a poderá concluir-se, igualmente, que, por aqueles remotos tempos e nos muitos que se lhe seguiram, a mesma diferente morfologia privilegiava a força física masculina, acentuando assim aquela já dita disparidade e dotando os homens, dentro do grupo, duma superioridade evidente perante o decurso hodierno da vida por então vivida.
Com estes considerandos, retornemos à nossa civilização. Ao como nela eles se concretizaram ao longo destes últimos dois milénios e tal. Destarte e sem retroceder no passado, arribemos aos tempos helénicos aonde a encontramos já plenamente sedentarizada e parcialmente agregada em núcleos habitacionais. E onde a família era a base da sua estrutura. Família essa, em regra, monogâmica e patriarcal. Patriarcal porque aquela superioridade masculina já se apresentava como um efeito natural impositivo e incontornável. E para se atentar essa pretensa superioridade, basta recordar que já nos tempos homéricos, na Odisseia, se relata como Telémaco repreende a mãe, Penélope, perante os pretendentes dela, ordenando-lhe “recolhe à tua câmara e trata dos labores que te são próprios, do tear e da roca, e ordena às escravas que vão para o trabalho”. Atitude que nos mostra que, mesmo naqueles tempos ainda não helenísticos, a mulher não tinha intervenção política, nem direitos civis e estava sujeita à tutela dum homem (primeiro do pai, depois do marido e na falta deste a filho varão ou, não existindo ele, ao parente masculino mais próximo). Situação de subordinação que se manterá nos tempos que se lhe seguiram e que, reportada a Atenas, pátria da dita originária democracia (?), está assumida por diversos escritores: de Aristófanes, mormente na comédia “Lisistrata”, ao já citado Aristóteles. E que elas, as mulheres, remetidas ao gineceu eram comparadas à “mélissa”, preferencialmente à mestra, como resulta do “Oikomonikós” de Xenofonte, ou do poema “Iambus” de Sêmonides de Amorgos; ou seja, estavam destinadas à perpetuação da família (concepção de filhos egítimos) e à tarefa da administração doméstica. Sem nos alongarmos mais nesta listagem de invocações tendentes a demonstrarem essa existente subalternidade feminina, basta lembrar que nem sequer as eupátridas estavam inscritas nas listas dos “polítikoi” e apenas constavam das da respectiva “fratria” (para se lhes reconhecer e obterem a naturalidade). Assim, nesses idos a que nos estamos a reportar, a condição social da mulher era, portanto, duma quase total dependência do homem que a tutelava e duma sociedade em que do “Céu” (Olimpo, onde, entretanto e entre muitas outras, encontramos a sabedoria -Athena- e as artes -Musas-) à “Terra” (a dita democracia), as sujeitava e por isso o homem imperava sobre elas.
Depois, da transladação da cultura helénica para a romana, a posição da mulher pouco se alterou. É que, completamente enraizado aquele modelo patriarcal do “Céu” à “Terra”, a sociedade continuou predominantemente masculina, sobrelevando os “patria potestad” e “pater família”, que mantiveram a opressão que, a par da quase ausência de direitos individuais, fica bem patenteada numa das cerimónias da modalidade de casamento mais usada pelos “civis”, em que a esposa ao entrar em casa do marido e além doutras práticas, perguntada por ele qual era o seu nome, abdicava do próprio e respondia com a feminização do dele.
Posto isto, dir-se-á que esse estatuto social das mulheres vai permanecer quase inalterável durante toda a Idade Média, como se pode considerar ironizado no mito anedótico dos “cintos de castidade” da época das cruzadas.
A regra da sociedade patriarcal manteve-se, portanto, firme e incontestável. E assim se vai aguentar durante as seguintes fases atribuíveis à nossa civilização, do Renascimento ao Século das Luzes.
Depois ... depois surge um fenómeno que lhe provoca alterações: a industrialização e a sua sucessiva ampliação em progressão geométrica. O que, para a perspectiva que se prossegue neste texto, pressupõe, e corresponde a necessidade de um maior volume de mão de obra e também ela duma intensidade progressiva. Ora, por diversos motivos que não cabe agora escalpelizar, essa maior quantidade, a partir de determinado momento, centra-se em, e alimenta-se também de, mulheres. Mulheres que não estavam empregadas e passam a estar; para mais deslocadas para o local de trabalho. Para essas o “gineceu” ficava para trás, no passado. E novas relações se estabelecem entre elas, para o trabalho e não só, pois começam a interiorizar a necessidade de direitos próprios e de os exigirem.
Neste último contexto, finalmente, a partir de meados do século XIX nascem os primeiros movimentos reivindicativos. Que recrudescem no século seguinte e terminam por conquistar direitos políticos, civis e caminham para a plena igualdade de género que, neste nosso presente, está já, pode dizer-se, estatuída (as quotas são um sinal nesse sentido, se bem que questionável), mas que não se encontra ainda socialmente integrada (considere-se o “Céu” católico). Integração que está a ser processada em termos nacionais, ou mesmo regionais e a diferentes andamentos, uns e outros dependentes das particularidades de cada uma dessas sociedades (lembre-se que em Portugal e por meados do século passado ainda era legalmente admissível o depósito de mulher casada).
Em qualquer caso, ao modelo patriarcal, parece, a “matadora” já lhe enterrou a espada até à guarda e a “praça” assiste a ele ser volteado na “arena”, à espera que se desmorone agonizante.
“Quid sequitur”?
Fundevila,
17 de Janeiro de 2025