Festa de consumo

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Pois é!


É! Foi no que se transformou o Natal. E somado ao Halloween e às Black Friday, constituem desenfreadas explosões consumistas das sociedades ocidentalizadas; prosseguindo, assim, a constante aculturação estado-unidense que as vai avassalando por estes tempos revoltos. Destarte, dos termos às expressões técnicas e correntes, às músicas, aos filmes e séries, aos espectáculos e por aí fora, esta nova espécie natalícia extrapolada do “circenses”, também se conjuga para uma apressada adulteração da nossa cultura (porventura, quiçá,talvez, desculturação). E no entanto ...
No entanto, os dois primeiros fenómenos, com bem diferente conteúdo, nasceram, florescerem e fizeram parte do nosso milenar modo de estar. E ambos, correlacionados com a religião cristã, provêm do fundo dos séculos; sendo que o segundo, “all hallows eve”, eventualmente lhe subjaz, pois pode advir do antiquíssimo culto dos mortos (aliás generalizado entre velhas culturas planetárias). Mas, repete-se, subsistem como expressões colectivas que já pouco, ou nada, têm a ver com o que foram.

Aliás, os últimos festejos do Halloween equiparados ao primeiro dia da Estação do Tempo dos Mortos (véspera, dias deTodos os Santos e de Finados) têm-se intensificado na sua promoção e diminuem a hegemonia d’outrora daquele (salvando-se, talvez, o seguinte de romagem aos cemitérios). E mostra uma medrança significativa por comparação com anos anteriores; com uma cada vez maior utilização de toda uma estranha parafernália que pouca identificação tem com as práticas anteriores, maioritariamente religiosas, íntimas (familiares) e centradas, nas manifestações exteriorizadas, em flores e velas ou luminárias. Em qualquer caso, aquilo que foi o “all hallows eve”, que se crê criado na alta Idade Média (depois consolidado ao logo dela e posteriormente institucionalizado, e alargado, a toda a Europa, bem como a algumas colónias), consistia na preparação católica, e de alguns cultos protestantes, para o reconhecimento de eleitos que se tinham ido e que eram merecedores da, digamos, gratidão dos que estavam. Era, pois, o começo dum acto de elevada intenção, cheio de significado espiritual e praticado por essas comunidades. Não era, por consequência e assim, uma espécie de brincadeira própria de meninos que ainda acreditam em papões, ou se alimentam de prestidigitações harrypotterianas e quejandas invencionices.

Mas deixemos de lado o já ido Halloween e fixemo-nos no Natal que, como a etimologia no-lo indica, se reporta ao surgimento, à “noite” da Terra, de Jesus; ou seja, o da data do nascimento de Cristo, o messias que originou o cristianismo e os seus actuais múltiplos desenvolvimentos. Sendo, portanto, como qualquer outro sucesso natal e de um modo geral, um momento de esperança (boa nova) no, e para o, nascido e de alegria para os progenitores e respectivo agregado, que, destarte, celebram a sua progressão renovadora. Ademais, este preciso dar à luz de Jesus, foi o de o “Unigénito” e por isso carregado de uma mística que deu, e continua a dar, ao nosso mundo, mundos. Por o que e durante muitos séculos, a data atribuída a esse evento tem sido reverenciada e, pelo menos em épocas mais recentes, considerada e vivenciada como a da festa da família. E nesta um momento de intensa comunhão e alegria.

Deste modo e para quem tem recordações de outros tempos, a Noite de Natal com a sua ceia fausta(?), o posterior montar o presépio e adornar o pinheiro, com a consequente confraternização de grande proximidade que então se desfrutava horas fora até à ocasional ida à Missa do Galo e, depois, o pôr os sapatinhos no fogão, ou lar e o acordar cedo no dia seguinte para ver o que Menino Jesus tinha depositado neles, eram momentos inolvidáveis e, sobretudo, duma pertença parental que permanecia, quer-se crer, para toda a vida. Repetida, aliás, nas gerações. E celebrada na literatura, mormente na poesia, sem que a prosa deixasse de se lhe dedicar, como e exemplificando relata Júlio Dinis no capítulo XVI de A Morgadinha dos Canaviais, ao descrever a noite de Natal numa abastada casa burguesa do meio rural nortenho, ou, em contraposição, Aquilino, no seu O Livro do Menino Deus, capítulo VI, aonde em forma grandiloquentemente somítica, em escassas palavras, esquiça a de uma mãe pobre e sua menina ... e o sonho desta. Duas panorâmicas, dois estratos sociais que, contados com um século de separação, confirmam desigualdades que, todavia, ainda subsistem, porque, mesmo neste nosso presente e por cá, o Natal não é materialmente semelhante para todos os que o festejam.

Ponto este em que, mais uma vez, bolinamos. Desta feita para atentarmos na aculturação e seus efeitos. Assim, é uma constante histórica que as culturas mais evoluídas, ou dominantes, acabam por se impor às com que contactam, ou subjugam. Sem se ir mais atrás e a outras geografias, foi o que sucedeu com a helénica, depois com a romana que a assimilara parcialmente, prosseguindo com a do Império e a sua claudicação perante as invasões bárbaras, ou uma sua incompleta absorção nos territórios romanizados, para, a seguir, se entrar da escuridão da Idade Média, o “rinascimento”, o seu desenrolamento que nos conduziu às “descobertas” e a um novo espaço mundial, à colonização e à implementação, com diferentes gradações, da nossa cultura sobre os povos a ela submetidos. Depois, as Grandes Guerras e a partir da 2.ª, a dependência do Tio Sam que, paulatinamente, tem vindo a introduzir os seus usos e costumes (que são a essência da sua cultura materialista e pragmática, com raízes na de fronteira da sua expansão interna e se baseia numa lógica simplicista, categórica, dicotómica e absoluta entre o bem e de o mal, com a imposição do primeiro pela força). E é nessa fase de grande absorção que, assim parece, nos achamos.

Entretanto, o nosso Natal, o nosso que herdamos, era outra coisa. E não se afirmava pela colocação de ornamentos luminosos nos lugares públicos (no passado, aqui e ali, possivelmente, fogueiras) ou no exterior de privados, nem nesse espectáculo duma extasiação papalva, mas que é, conjuntamente com divertimentos vários, o instigador de compras e intencionado para fomentar o comércio ... intensificar consumos (malgrado a sua perniciosidade ecológica). E isto decorrente de novas práticas, mormente a de prendar em excesso, a torto e a direito; na ânsia adicta de comprar sempremais e mais. Num, portanto, festejar que muitas vezes e cada vez com maior frequência se afasta do lar, elemento congregador e raiz física da pertença à família.

Este Natal que nos é presenteado é, pois, muito distinto do que nós, os velhos, temos como recordação.
Não são, porém, esses modernos cenários que distorcem a imagem dum passado que se foi e que, por conseguinte e de certa maneira, aqui se questiona. Mas, antes e apenas, o querer entender o resultado dessa desconstrução da identidade que era a nossa, adquirida ao longo de todo um processo histórico milenar e que, como se assiste, vai sendo paulatinamente substituída. E sem, entretanto e assim, se poder responder ou apontar todas as causas que produzem esse efeito transformador, queda, todavia, a evidência de que essas novíssimas configurações são, elas em si e também, a continuidade daquele processo.

Por isso a formulação da pergunta, ainda sem resposta perceptível, fica a pairar e, entretanto, ajuntam-se-lhe as achas duma dupla invocação de Josés: o Pacheco Pereira e o seu artigo de opinião publicado no Público de 30 de Novembro, “A perda das duas culturas” e o aforismo japonês que Tolentino de Mendonça reproduz no seu recente livro “A VIDA EM NÓS”, o qual, pela profundidade da sua sagesse, se transcreve : “não te limites a fazer coisas, senta-te”.

Fundevila,
22 de Dezembro de 2024


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