Determinações

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Esta época entre o Natal e o Ano Novo é, ano após ano, um período estranho. A amabilidade
toma conta de nós, aprisiona a nossa consciência, a gentileza e a deferência para com os outros torna-se uma obrigação que importa cumprir sem falhas ou esquecimentos. Milhares de mensagens circulam entre telemóveis, muitas das quais, quando as recebemos, não fazemos a mínima ideia de quem as envia. O marketing empresarial tomou conta das nossas vidas, recebemos da Vodafone e do Sr. Pereira mensagens similares que nos massacram a atenção.
Esta época presta-se à contabilidade nas empresas e em nós mesmos. Conta-se o stock do que deveríamos ter feito e não fizemos e jura-se cumprir, no ano seguinte, tudo que este ano falhou. Partilharei, assim, por escrito, as minhas próprias determinações para o futuro próximo. A saber:

Menos telemóvel

A atual discussão sobre a proibição de smartphones aos mais novos é patética, pois, os mais velhos estão igualmente viciados no dispositivo. Apesar da crítica desmesurada à educação antiga, estamos a cair nos mesmos tiques. Quando alguém fazia notar ao pai que ele estava a ser incoerente ao fazer algo que proibia ao filho, a discussão terminava com um argumento de autoridade, do género: eu sou eu e tu és tu. Estamos no mesmo, só que agora em digital.
Se estamos viciados nestas coisas é porque os atuais telemóveis têm particularidades fabulosas. Desde os nossos documentos, a pagamentos vários como o estacionamento a que, de longe, renovamos o período, até à informação detalhada dos autocarros que temos de apanhar numa
cidade estrangeira que desconhecemos, ao restaurante no meio do nada que descobrimos, àquela música que já não ouvíamos há tanto tempo, tudo é absolutamente mágico, principalmente para quem se lembra do trabalhão que estas coisas davam, dantes.
No entanto, a coisa tende a tomar conta de nós. Numa recente viagem que fiz de comboio saquei de um livro que fui lendo durante a viagem. Na minha carruagem não existia uma única pessoa que não estivesse a olhar para o smartphone. Nenhuma além de mim, qualquer que fosse a idade, estivessem sós ou, teoricamente, acompanhados. Ninguém conversava naquele comboio, ninguém. Senti-me o ser vivo mais alternativo do universo e gostei da sensação. Por isso há que desligar as notificações até ao osso do indispensável.

Mais travessas de inox

A uma determinada altura o ir comer fora deixou de ser uma necessidade ou um prazer, para ser uma experiência. Estou enjoado de experiências gastronómicas, de reduções, de nomes estrangeiros e beringelas confitadas. Comer é comer. É um ato fisiológico e, no seu zénite, um ato de amizade. Estou farto de mariquices. Quero um bom bife grelhado numa travessa de inox, com o arroz e as batatas a ocupar as laterais. Quero aquele som metálico a avisar que a comida está em transição entre a travessa e o meu prato. Agora que já perdi, pelo tempo, o meu trauma com o som do inox batendo em inox, que entrou dentro do meu corpo em Mafra, quando ficava de serviço na cantina militar e lavava todo aquele inox com uma vassoura e detergente e à noite tinha dificuldade em adormecer, pois aquele som metálico ficava gravado na minha cabeça. Agora não. Enquanto houver travessas de inox há comida portuguesa e a preço amigo.

Mais elogio

Recentemente tive de ir aos serviços da Segurança Social no Largo do Carmo. Quando percebi a tarefa ia desmaiando por terror antecipado. No entanto, como sou moderno, marquei a tarefa por computador. Demorou apenas dois dias a marcação. Ficou para as 13h15. Às 13h16 sou chamado. Relatei a minha surpresa e o meu contentamento à simpática funcionária que me atendeu. Elogiei-a e ela ficou contente por isso. Tinha de partilhar a minha alegria com ela, fazendo-a um pouco mais feliz também. É educado e justo. No guichê ao lado uma senhora – pouco mais velha que eu – é atendida com uma senha prioritária. A funcionária pergunta-lhe qual o motivo da prioridade, a utente, sonsa, diz que foi a senha que lhe saiu. A funcionária, calmamente, diz-lhe que deve voltar à entrada e tirar a senha apropriada. Ela foi-se resmungando e eu, por momentos, senti-me a viver no país mais civilizado do mundo. Reafirmei o elogio e estou disposto a gastá-lo com abundância sempre que necessário.

Mais amizade

Muito recentemente, por funestos motivos, fui, com três valentes parceiros, a um funeral de um amigo e a uma homenagem póstuma a outro amigo, ambos dos tempos de universidade em Coimbra. Tive que escalonar as minhas obrigações entre a realidade e a saudade. Ganhou, por goleada, a saudade. E num gesto tão pequeno como o de tirar um dia para homenagear com a presença aqueles que me fizeram, pelo convívio com eles, um pouco melhor, senti-me digno da amizade com que eles me brindaram em vida. Senti-me humano e, sobretudo, senti a perene imortalidade daqueles que já não posso, fisicamente, abraçar.

Menos cigarro

Adoro fumar. Há um estranho apelo ao cérebro quando se fuma. Uma pausa intelectual entre o fumo entrar e sair do corpo. No entanto posso tornar o prazer ainda mais exclusivo se reduzir os meus 9/10 cigarros diários para 5/6, 7 vá lá. Vou tentar. Só na escrita desta crónica já fumei 3.
Associo a escrita ao cigarro. Parece que nada sai se o fumo não entrar. Raios! Esta minha determinação está a começar mal.
Boas Festas.

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