Do bom-senso
Quando se baixa o nível da discussão política ao ataque pessoal, ao amesquinhamento do adversário político, à crítica das ideias dos outros e não à defesa das suas próprias convicções, está-se a menorizar
– não o adversário – o próprio sistema democrático. A campanha eleitoral que esta semana terminará teve muito disso. Tal aconteceu por falta de ideias, pela falta de sentido de estado, ou, pura e simplesmente, pela mais elementar ausência de bom-senso.
Apesar do eco do vazio que as redes sociais alimentam agora, sempre houve baixa política. Perante a onda da esperança que a AD protagonizou nas legislativas de 1979, a pequena política desenterrou na insídia e na calúnia o seu patético argumentário. Que o Sá-Carneiro se amantizou com uma bela dinamarquesa, Snu, abandonando a mulher, era o que se espalhava para baralhar a moral católica. Perante o ataque, naquela altura bem mais verrinoso do que hoje é possível supor-se, Sá-Carneiro, com a frontalidade que se lhe conhecia, afirmou: “se a situação for considerada incompatível com as minhas funções, escolherei a mulher que amo”. Brutal, decisiva e poética a resposta então dada.
O que Sá-Carneiro então fez foi arrumar o assunto dizendo o que sentia, e como agiria em função do seu sentimento. O sentimento, tal como a convicção política, é um traço de carácter. E o carácter nunca alimenta a radicalização; o que verdadeiramente o faz é meio-termo, é o esconder o que verdadeiramente se pensa. A organização de pessoas maldispostas em torno de desbocados de ocasião, deve-se, sobretudo, à incapacidade de os líderes dos partidos centrais serem frontais, de se focarem nas suas ideias políticas e não enfileirarem na pueril missão de agitar fantasmas alheios, de fazerem do medo ao outro a motivação para se votar.
O discurso de António Costa no Porto, na campanha do PS, escorchando os primeiros-ministros sociais-democratas que o precederam é um exemplo dum discurso rasteiro e democraticamente contraproducente. Degrada o exercício da política e nivela-a à dimensão daqueles que, jura, diz combater. O indisfarçável azedume de Cavaco também não ajuda nada.
Quando a retórica se reduz ao insulto alheio ou ao leilão de quem dá mais, fica uma sensação estranha de morte da política, pasto preferencial de quem entende a democracia um simples meio, e não um fim civilizacional de progresso dos povos e das sociedades.
Há, hoje, uma absoluta necessidade de bom-senso e não de uma garotada que se atira para a frente e, na ressaca, se desculpa do que disse ou do que fez, porque bebeu demais. Nunca compreendi, nos meus conhecidos, essas excitações alcoólicas e muito menos tenho paciência para as ver e ouvir de políticos. Nada acrescenta. Tudo diminui.
Amar alguém é o mais nobre dos sentimentos humanos. Amar é ter capacidade de se sair do círculo egocêntrico e expor-se a outrem e, dessa forma, também a si mesmo. Às vezes tem-se retorno nesse amor, de outras, como no personagem das Noites Brancas de Dostoiévsky, fica apenas a admirável sensação de entrega e despojamento pessoal que, mesmo não correspondido, enobrece.
Desse amor a outro, ou aos outros, é também feita uma declaração que li num diário de campanha. Perante a pobreza das perguntas jornalísticas aos “populares”, sempre alicerçadas na repetição do fácil e do banal, uma aposentada responde que a sua reforma não é o que a preocupa; ao invés, o que verdadeiramente a inquieta é o futuro dos seus netos e a ausência de perspetivas que eles têm no presente. Albina Santos, é esse o nome que vem na peça do Público, reduz a nada, com elegância, o círculo diabólico da pergunta/acusação pesada e vulgar, através da brutal força da generosidade. E ganha. Pelo menos para mim.
Ao António Mota-Prego que decidiu terminar nesta coluna (infelizmente) uma colaboração de décadas. Pela minha amizade por ele e pelas antecipadas saudades das memórias que connosco, generosamente, partilhou.