“Até ao meu regresso”

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Como a esmagadora maioria dos mancebos da minha geração, cumpri serviço militar obrigatório e fui mobilizado para integrar uma companhia operacional na Guiné.


A minha partida para aquela ex-colónia foi marcada para o dia 05 de agosto de 1970 pelo que, nas vésperas dessa data, procedi a alguma visitas de despedida.

Dessas destaco duas, pela sensação que me deixaram desse momento tão particular: uma das despedidas ocorreu na Curia, onde se encontrava a águas o casal do meu tio preferido, João de seu nome e radiologista de
afamado mérito, a quem quis quase como a um pai; a outra, às minhas tias da rua de Santo António, senhoras que, quem acompanhou estes meus escritos, já conhece “de ginjeira” através das memórias ou lembranças que nestas
colunas fui vertendo.
No primeiro caso, a minha tia, Maria da Glória, senhora de apurada sensibilidade e profundamente religiosa, quando me deu, olhando-me ternamente, o beijo de despedida, dedicou-me, em voz ciciada, uma bênção, enquanto
me traçava na testa, com o seu polegar direito, uma cruz de Cristo. Houve, discretas, algumas lágrimas. 

No segundo, as tias, sentadas à mesa de camilha em que domesticamente moravam, uma tricotando malha e outra fazendo croché, quando delas me despedia com uma espécie do tão ouvido “adeus, até ao meu regresso”,
quase sem despegar os olhos das respetivas armas de trabalho, retorquiram-me praticamente em uníssono - “Espero que voltes”!...

O sinal da cruz que recebi na Curia emocionou-me, porque dele colhi como que uma proteção, para mais com centro – o que a tia talvez desconhecesse – no local anatómico em que, na guerra, os atiradores mais se
esforçam por atingir o inimigo. Não se me reduziu o receio de que tal, ou algo semelhante, me pudesse acontecer no exercício da atividade para que fora mobilizado, mas sem dúvida cresceu-me a confiança de que assim não
aconteceria.
Sorte a minha ter ido primeiro à Curia e só depois à rua de Santo António; é que aqui, aquele tão anódino “Espero que voltes”, não fosse o carinho das palavras e a fé no meu regresso que a tia Maria da Glória me
dispensou, e partiria com o sentimento de que o meu regresso seria uma mera e sofrível esperança desprovida de fé em que o esperado se cumpriria.
Por razões várias, nas quais incluo a fé da tia que na Curia me abençoou, regressei, o que aconteceu exatamente dois anos depois de ter partido, ou seja, a 05 de agosto de 1972.
Porque regressei e, de então para cá, não fui atropelado, nem vítima de agressão, acidente ou doença mortal ou incapacitante, aqui estou, neste dia 27 de fevereiro do ano de 2024, a completar 80 anos de vida. Em
desconhecido estado de saúde, porque, como diz o povo, “ninguém diga que está bem”, mas – surdo seja o mafarrico – sem que sinta razões de queixa dela.
A minha primeira “OPINIÂO” tinha por título “O OVO DA SERPENTE”, e versava um surto de antigitanismo, a propósito de uma comunidade cigana instalada no concelho de Vila Verde.
Desde essa altura os ovos postos têm-se multiplicado e vários eclodiram já, enchendo o ar de pestilento odor rácico e xenófobo, e o horizonte de pesadas nuvens cujo negrume se vai adensando.
Data essa “OPINIÃO” de 14 de abril de 1997 e foi publicada a 17 do mesmo mês.
Ou seja, participo nestas colunas há 26 anos, um mês e 20 dias, a que acrescem os 29 de fevereiro dos anos bissextos entretanto havidos.
Escolhi sempre tempo redondo para cessar as atividades mais notoriamente públicas a que durante a vida me fui entregando: na política militante, os vinte anos de presidente da Assembleia Municipal e, na profissão, os 50
anos do seu exercício.
O cumprimento de oitenta anos de vida e de mais de 25 anos de escrita jornalística com o critério como é o destas colunas, são bastantes para que sinta que continuar constituiria, pelo menos a meus olhos, como que uma ocupação sem fim à vista, ou, melhor dizendo, com o fim triste de eventual incapacidade para continuar, no mínimo, e benevolamente, por perda do viço com que entendo não dever faltar ao que aqui escrevo. 

Durante este quarto de século em que aqui escrevi, muita vida passou por mim, alegrias enormes e tristezas várias, contando-se, nas primeiras, a indescritível do nascimento de descendência e, entre as segundas, a dor inenarrável de perda que sinto como se estivesse permanentemente a acontecer.

A passagem pela presidência da Assembleia Municipal e o exercício da profissão de advogado foram experiências de enormíssimo enriquecimento pessoal.
Não seria justo que terminasse sem os agradecimentos devidos a quem me permitiu e incentivou nesta minha caminhada plumitiva e, sem o saber, igualmente contribuiu para o acervo da minha riqueza interior.
Sem a preocupação de qualquer critério de ordem, que seria sempre iníquo, agradeço a “O Comércio de Guimarães”, na pessoa do seu diretor, o convite que naqueles idos de 90 do século passado me foi endereçado
para integrar este local de “OPINIÃO”.
Agradeço aos meus colegas de escrita nestas colunas, a companhia, a inspiração e a honra em ombrearem as suas com as minhas opiniões. Não poucas vezes as deles foram o alimento das minhas e por isso lhes devo
gratidão. 
Agradeço aos meus leitores a paciência de me lerem, podendo estar certos de que foi, sempre, com o pensamento neles, por vezes em alguém certo e determinado, que fui buscando nos recônditos da minha memória,
das minhas lembranças, da observação do mundo à minha volta e daquele que me foi sendo dado conhecer, a matéria com que fui alinhando, em palavras escritas, o meu passado e o meu pensamento.
Agradeço, de um modo geral, aos meus conterrâneos, por me terem proporcionado neles colher, para poder transmiti-los, os sabores, as fragrâncias, o colorido, os humores, os segredos, as legítimas vaidades nesta minha
terra, que amo acima de qualquer outra.
Não foi sem intensa reflexão que decidi cessar a minha participação programada neste prestigiado e estimável semanário; as saudades antecipadas dos meus leitores, das palavras simpáticas com que me disseram
acolher os meus escritos, eram um obstáculo de monta à decisão. Mas sopesando o que o coração me pedia e o que a mente me aconselhava, achei sensato decidir como decidi.
A decisão, todavia, não significa o falecimento da minha vontade de participação escrita sempre que particulares acontecimentos e especiais circunstâncias a tal me motivem.
Por isso, esta despedida não é propriamente um adeus, mas antes um até sempre.
Como última expressão do que neste momento me vai na alma, a quem me acompanhou, em todo ou em qualquer momento deste percurso, aqui deixo um grande e forte abraço carregado de afeto.

Guimarães, 27 de fevereiro de 2024
António Mota-Prego
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