Atração fatal
Desde muito cedo na minha vida que tenho uma atração pela notícia, pelo retrato aproximado do presente.
Apanhei o 25 de abril com 9 anos e toda aquela realidade, ou representação da realidade que as notícias transmitiam, exerciam, em mim, um magnetismo tremendo. Lembro-me claramente, já com 11 anos, assistir ao debate na RTP entre Cunhal e Soares, de ter ficado pregado, durante quase quatro horas, ao ecrã, torcendo por Soares e a sua visão democrática para o país. Hoje uma hora de debate político já é uma seca, abundando a “informação” de segundos que o TikTok ou outras redes sociais providenciam, sem ideias, apenas com preconceitos e banalidades que se destinam a influenciar o bovino sentido crítico de quem nelas se predispõe a acreditar. Hoje, de forma paternalista e preguiçosa (para nós), existem hordas de comentadores políticos para nos explicarem, como se nós fossemos incapazes de ter sentido crítico, se a decisão de A ou a convenção de B foi, ou não, um sucesso.
A política é algo de complexo e, muitas vezes, de contraditório, que se esconde nas sombras da aparência, como a vida de cada um. Não é substancialmente diferente da vida. As falhas da política, as contradições, as desilusões que ela provoca, são obra do espírito humano, assim como as suas realizações e os seus sucessos.
A imprensa teve um papel importante no desenvolvimento das sociedades, na democraticidade que muitas delas tiveram capacidade de prosseguir. No século XIX e na maior parte do séc.XX, a imprensa, com os jornais em particular destaque, apesar do alto grau de iliteracia, tiveram uma importância extraordinária ... e davam lucro. Cada comunidade, como Guimarães, tinha imensos títulos e as pessoas tentavam encontrar neles, frequentemente, uma fonte para a sua formação crítica ou, também, uma maneira de se distraírem ou, até, encontrarem mulher casadoira. Recordo-me do Toural, ao sábado ou domingo, cheio de gente lendo o jornal ou passeando-o com indisfarçável orgulho.
Hoje a crise dos jornais mete dó pela irrelevância a que são votados. Numa sociedade em que a humildade de cada um desapareceu por magia não é preciso formar opinião, pois o primeiro disparate que vem à cabeça é a notícia própria nos milhões de pequenos mundos em que habitamos.
Hoje a crise da comunicação social é visível. Incapaz de contrapor as suas qualidades críticas e de investigação à imbecilidade reinante, mimetizou-a. Dantes quando alguém queria ler sobre coisas bizarras comprava o Tal&Qual, hoje a atração fatal pela pequenez espalha-se na comunicação social de “referência” e transforma os macacos, pela importância que lhes dão, nos donos deste zoo noticioso.
No domingo não pude deixar de, mais uma vez, estar atento às eleições dos Açores. A importância que dão ao partido do Dr. Ventura é uma vergonha. Não há outra maneira de o dizer.
Há, na comunicação social, uma esquizofrenia à volta do bizarro que enjoa e o alimenta. O Dr. Ventura, um homem habilidoso, conseguiu que o país se viciasse em torno dele. As perguntas dos jornalistas repetem-se até à má educação, até ao vómito, alimentadas também, diga-se, por partidos políticos sem ideias, que não sejam as do aceno de fantasmas na casa dos outros. Desta forma o Dr. Ventura tem conseguido iludir o facto de liderar um partido sem quadros políticos, com segundas linhas sinistras, que afirmam, perante o embevecimento da comunicação social, a sua vulgaridade intelectual e política.
Apesar de tudo não me sinto, hoje, pessimista. Quando vemos os nossos agricultores, na sua justa luta, partilharem a febra e o presunto com outro trabalhador, em vez de destilarem o ódio e a falta de respeito pelo património coletivo, há sempre a esperança de que este povo com 900 anos percebe afinal o que importa e não se aliena com facilidade.
No entanto, por vezes, deixamo-nos encantar demasiado pela quietude das coisas, pelas certezas dogmáticas de quem vocifera alto: o Portugal pequenino.
Estou a ler a biografia de Natália Correia, impecavelmente escrita por Filipa Martins. Não sendo fã absoluto da sua poesia, são fã da personagem, que entrou na política pela sua amizade com Sá-Carneiro. Numa das peripécias relatadas, Natália é mandada parar pela polícia por estar a conduzir de ombros a descoberto. Protestando com a autoridade pelo facto de outras mulheres o fazerem, o polícia argumenta que ela se encontrava já fora de Lisboa e que, por isso, o decoro se impunha. A escritora contra-argumenta, com o seu desarmante humor, “desde quando é que a moral está na razão direta da quilometragem?”. Reage, com humor, ao despautério.
A capacidade de responder, de pensar e não nos deixarmos amesquinhar pela indigência vigente, pelo ódio, pelo bullying noticioso, pelo “quero que se f***”, é necessária. Dá trabalho, é certo, mas compensa. É assim que se constroem as nações, como a nossa. Cheia de defeitos, é certo, mas inapelavelmente nossa e a precisar, urgentemente, de rumo e de perspetiva.