A propósito do meu Avô

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Há dias surgiu no meu telemóvel, via Facebook, uma fotografia, que julgo ser de finais dos anos 40 do século passado, tirada aquando de um encontro de médicos vimaranenses,

que se reuniram em almoço no hotel da Penha.
Entre eles está, entre vários outros médicos que reconheci, o meu avô, andaria ele a chegar-se aos 70 anos de idade.

O meu avô era um homem alto, bem parecido, elegante e distinto, pouco conformado com o embranquecimento do cabelo, ao qual aplicava uma receita que lhe dava um tom castanho muito claro.
Fora fumador e, como quase todos os homens nascidos no século XIX, usava um apêndice capilar facial; no caso um bigode. Fumava.
Quando entrou no adiantado da meia-idade decidiu, radicalmente, livrar-se do tabaco e do bigode e adotar, como dieta regular, a todas as refeições, cozido de peixe ou de bacalhau. Por vezes petiscava um nico do que era servido aos restantes comensais que, a título permanente, eram a minha avó, as minhas três tias e, a partir de 1946, eu, que me tornei objeto principal das atenções familiares e pretexto para o grosso das conversas..

Ao almoço, de segunda a sábado, acresciam o meu pai e um sobrinho do meu avô, ambos residentes em S. Torcato, cujos horários de pausa para o almoço as circunstâncias da época não permitiam que fossem almoçar a casa.
A dada altura, andava eu a caminho dos cinco anos, as tias passaram a duas, em virtude do casamento da única que casou. Esta tia era airosa, ar voluntarioso e favorecida com certo volume anatómico, enquanto o noivo era muito franzino, nariz adunco, pescoço um pouco enterrado nos ombros e olhos sempre a piscar, disparidade esta que, tal como a riqueza e a pobreza no mundo, o tempo se encarregou de acentuar; e eu, com a aquisição da capacidade de observação, fiquei convencido que ele, a partir de certa altura, passou a ser vítima de violência doméstica; física, nunca vi, nem dela ouvi falar – o que não quer dizer nada – mas psicológica sofreu-a inúmeras vezes à minha frente. A minha tia debitando um muito espesso caudal de palavras recriminatórias e humilhantes, as solteiras assentindo com a cabeça, como aquele senhor gordo permanentemente atrás do Dr André Ventura sempre que este se dirige a Portugal entre duas lambidelas de lábios, verborreia aquela a que o marido da tia reagia acentuando o piscar de olhos, enterrando mais o pescoço entre os ombros e dizendo … nada! Assim confirmei o dito de que “o calado é o melhor”. O meu tio era, realmente, um bom homem. Eu gostava muito dele e tive mostras de que ele me correspondia.
É algo difusa a minha lembrança do casamento deles, mas recordo bem que fui a criança dos anéis. Tenho, porém, a ideia de um casamento muito sui generis.
Cerimónia religiosa em casa dos meus avós, cuja chamada “sala de visitas” fora adaptada a capela.
Pela única foto que conheço do evento, daquelas pequeninas com margem branca de rebordos frisados, confirmo a memória que me ficou de um “banquete” transformado em lanche de salgados e bolo de noiva, meia dúzia de convidados, o noivo, muito compenetrado, de casaca e respetivos acessórios e a noiva, ridente de orelha a orelha, envergando um vestido às riscas verticais, muito largas, de dois tons de lilás...

Quis eu falar do meu avô, e veja-se para que caminhos já fui levado! Acontece-me quase sempre isto, de as lembranças se entrelaçarem como, diz o povo, as cerejas quando se puxa por um par delas.
Na foto dos médicos o meu avô está sentado, pernas descruzadas e mãos de dedos entrelaçados sobre elas, numa pose um misto de simplicidade e nobreza, condizente com o seu caráter.
Também o sorriso, apesar de apenas esboçado, revela a bondade de que era feito, que o levava, tantas e tantas vezes, a não só não se fazer pagar pelas consultas, não raro domiciliárias e frequentemente a meio da noite, como a deixar dinheiro aos mais desfavorecidos para adquirirem os medicamentos que prescrevia.
Esse sorriso, mesmo que ténue, tornava-se como que luminoso quando me era dirigido. Uma das maneiras como eu, ainda criança, retribuía esse enlevo, era querendo sempre, às refeições, comer um bocadinho da comida do avô, razão, talvez, pela qual ainda hoje, para mim, batata cozida, nem que seja só batata, é sempre petisco.
As refeições, lá em casa, eram um momento relevante: porque a minha avó herdara seis quintas e o meu avô uma, os réditos da família eram os resultantes das rendas pagas em géneros, e, quando não era eu que estava na berlinda – porque entretanto me era atribuída presumível inteligência e aprendera a fazer asneiras que criança que as não faça nunca foi criança – o assunto principal era a produção de milho, de batatas e, a par de outros géneros, de vinho, tendo eu ficado curiosíssimo quando, a propósito de vinho, pela primeira vez ouvi falar em borraçal, palavra cuja sonoridade me fez estremecer. “Este vinho tem muito borraçal” – e eu olhei para o líquido na caneca com ar desconfiado, como que receando ver dele emergir bichos, tipo morcões da fruta. Os circunstantes acharam muita graça ao meu temor, graça que, à explicação do que era aquilo, substituíra o temor inicial

Mais graça achava eu sempre que, já mais espigadote, as tias ou a avó, querendo certificar-se das existências para as refeições, se perguntavam, “ tomates, temos tomates?” e eu não continha o riso.
A graça não passava mas evaporava-se a vontade de rir com a reação musculada que o meu riso provocava, especialmente à minha tia mais nova, a tal a quem, a propósito de tomates, ironicamente serviam como uma luva os versos no final do Canto IX de “Os Lusíadas”, versos que, a outro propósito, dizem «Melhor merecê-los sem os ter / Que possuí-los sem os merecer».
O avô passava as refeições quase em silêncio e, quando falava, o mais das vezes era comigo, perguntando-me se estava a gostar da comida, ou assuntos respeitantes à minha vida de criança, primeiro, de adolescente, depois, e de jovem universitário, entre os meus 18 anos, quando fui estudar para Coimbra, e os 20 anos, idade que eu tinha quando ele faleceu, em casa. Assisti à sua morte.
Eu fui o primeiro neto do meu avô e ele teve, para comigo, tudo de bom que um avô pode ter para com um neto. Recordo-o sempre com uma indescritível ternura e uma enormíssima saudade. Também uma sensação de arrependimento por lhe não ter feito tanta companhia quanto sei que ele desejava, a partir do momento em que o apelo dos amigos e do arrastar a asa se tornaram irresistíveis.
Com ele aprendi a ser avô, estatuto a que me devoto com a maior dedicação, sem esquecer que, tal como comigo enquanto neto, o meu neto e a minha neta sentirão irresistíveis apelos que, sem lhes tolherem o afeto que a todo o momento me demonstram, sem dúvida me deixarão nostálgico da proximidade que foi e tem sido a minha com eles durante a sua infância e adolescência.

Guimarães, 30 de janeiro de 2024
António Mota-Prego
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