Programa «Largo do Toural»: Doenças sexualmente transmissíveis como VIH continuam a gerar "um certo" estigma
As doenças sexualmente transmissíveis (DST) continuam a ser diagnosticadas entre a população da área de influência do Hospital da Senhora da Oliveira, em Guimarães. Não têm um perfil etário, nem género associado, podendo a sua acção ser controlada com terapêuticas que exigem um compromisso sério dos pacientes.
Rosa Araújo, assistente hospitalar de Medicina Interna, é o convidada deste sábado do programa "Largo do Toural", da Rádio Santiago, numa entrevista em que reconhece que o estigma ainda ensombra a nova vida daqueles que são confrontados com uma DST.
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Confira o essencial da entrevista
As doenças sexualmente transmissíveis (DST) têm muita expressão no trabalho desenvolvido na área das doenças infecciosas do HSOG, na consulta ou no internamento?
Rosa Araújo (RA) - No trabalho que desenvolvemos, temos contacto com esses doentes sobretudo em ambiente de consulta, embora existam também casos de hospitalização em que temos contacto com essas doenças, no seguimento que fazemos na consulta. Temos duas tipologias de consulta e apesar de haver uma distribuição (os doentes com infecção pelo VIH são especificamente seguidos nas consultas de infecciosas II, na outra seguimos vários doentes que têm doenças sexualmente transmissíveis, mas não só). Por isso, não conseguimos dar uma perspectiva precisa do número de doentes em concreto, porque há várias infecções que seguimos em consulta, por exemplo a hepatite B, que não é de transmissão unicamente sexual.
Graças a várias medidas preventivas que fomos tomando ao longo do tempo e a terapêuticas que têm sido desenvolvidas hoje em dia conseguimos que essas doenças estejam controladas, que haja uma diminuição na sua transmissão, mas tudo depende dos comportamentos que as pessoas adoptam e do seguimento dessas terapêuticas. Além de acompanhar os exames e das análises, em consulta fazemos muita educação para a saúde, alertando para os riscos que se correm e as medidas que podemos adoptar em conjugação com a medicação.
Não há um perfil etário ou de género associado aos portadores de DST?
RA - A nossa consulta acompanha os doentes a partir dos 18 anos. Não nos aparecem só jovens, temos muitos doentes de média idade, pessoas com mais de 60 anos ou porque são tardiamente diagnosticadas ou porque até então não houve um seguimento prévio. Actualmente, há também uma referenciação mais alargada a partir dos centros de saúde, com rastreios que permitem identificar na comunidade os doentes que depois são encaminhados para a consulta de seguimento no Hospital.
Há DST que estavam praticamente erradicadas e que estão a ressurgir, por exemplo a sífilis?
RA - As DST têm uma transmissão por via sexual, mas há uma infecção como a hepatite B que não é unicamente transmitida por essa via. Temos vários doentes na nossa consulta porque tiveram uma transmissão vertical, foram infectados a partir de mães infectadas pela hepatite B numa altura em que a vacinação não existia. Actualmente, essas situações são pouco significativas graças à vacina.
Chamando particularmente atenção para a sífilis é uma infecção sexualmente transmissível que tem ressurgido de forma algo significativa, sobretudo porque acaba por ser subvalorizada face a outras infecções sexualmente transmissíveis, nomeadamente pelo VIH. Se vamos tendo algumas formas de prevenir a transmissão da infecção através de outros métodos, a sífilis só podemos prevenir a sua transmissão através da adopção de medidas preventivas e de evitar comportamentos de risco. Por vezes, para quem adopta um comportamento de risco pode parecer menos significativa a possibilidade de contrair sífilis porque é uma infecção transmitida por uma bactéria que se trata com recurso a antibióticos, mas que por vezes a monitorização ao longo do tempo não é assim tão linear como uma infecção mais banal. A sífilis pode ter algumas nuances no seu tratamento e permanecer no organismo durante mais tempo, causando sequelas.
Quais são as DST mais prevalentes entre os doentes que acompanham?
RA - Em consulta, no nosso nicho de doentes, as mais prevalentes são o VIH 1, a hepatite B não só no seu carácter de DST, mas também os restantes, e as sífilis. Estas são as mais preponderantes. Mas, temos outras DST que por norma não são o motivo de seguimento isolado na consulta porque habitualmente resultam de contactos pontuais, como a infecção pela Neisseria gonorrhoeae (gonorreia) ou pela bactéria Chlamydia Trachomatis (clamídia) que são infecções sexualmente transmissíveis causadas por bactérias. O que deve acontecer é que quando uma pessoa doente é identificada com esse tipo de infecção deve ser referenciada para uma consulta hospitalar desse âmbito, para que ocorra um rastreio das outras DST.
São doenças que exigem um tratamento prolongado?
RA - Depende. O VIH, sim! É uma infecção que exige um tratamento para a vida. Cada vez começamos a fazer o tratamento dos doentes mais cedo, porque sabemos que um doente com o vírus da imunodeficiência humana que cumpre a sua medicação diária, sem falhas, sem comportamentos de risco, tendo carga vírica indetectável, é considerado um doente intransmissível da sua infecção. Temos muita percepção na nossa consulta que os doentes na sua grande maioria são cumpridores e estão atentos aos riscos que advém da não terapêutica. A hepatite B tem tratamento, mas nem sempre há lugar para ele, porque há um conjunto de indicações para a pessoa ser tratada. Um doente pode ser portador do vírus da hepatite B e não ter critérios para a tratar, o que não significa que não deva adoptar na mesma comportamentos e práticas seguras na sua vida habitual.
A hepatite C pode ser de transmissão sexual, mas está mais ligada à utilização de drogas injectáveis. Há um tratamento que é curativo. Se a pessoa cumprir aquela medicação e novamente não voltar a ter comportamentos de risco, faz aquele tratamento durante um intervalo de tempo definido para aquela pessoa em particular, para o tipo de vírus que tem e a pessoa fica curada para o vírus da hepatite C. Ao contrário, na hepatite B, o vírus pode adoptar um comportamento no organismo como se ficasse adormecido, mas a pessoa não elimina o vírus do organismo.
A sífilis é o nosso grande desafio porque apesar dos esquemas terapêuticos estarem bem protocolados, em que sabemos bem que antibióticos deveremos usar, a sua erradicação não é linear, ou porque há 'janelas' para a pessoas se reinfectar ou porque o organismo não respondeu como esperado ao esquema de antibiótico e mais tarde poderá ser preciso fazer um retratamento. Da nossa experiência, os nossos doentes retratados acabam quase sempre por se reinfectar. Lá está, por haver uma certa desvalorização das repercussões que a sífilis tem em relação às outras reinfecções. É uma infecção que se esconde mais, com sintomas mais disfarçados, e é difícil de erradicar.
A sífilis pode ter efeitos muito incapacitantes nos doentes se não seguida à risca a terapêutica?
RA - A sífilis é uma infecção de transmissão sexual, mas depois pode afectar vários órgãos: o coração, o cérebro... Nós temos formas específicas de tratamento, mas a infecção pode ficar latente no organismo e produzir efeitos a longo prazo.
Em matéria de educação para a saúde, há receptividade dos doentes à mudança de comportamentos para que o tratamento a que estão sujeitos seja verdadeiramente eficaz?
RA - Acreditamos que sim. Em todas as consultas, tentamos esclarecer dúvidas, estimular doentes a estarem atentos aos efeitos dos tratamentos para partilharem os seus receios e alertar para alguns perigos que decorrem do seu eventual envolvimento em práticas que podem ser de risco e para as quais não têm a percepção. Procuramos arranjar esse equilíbrio entre sensibilizar a pessoa para esclarecer as dúvidas aderindo à medicação, mas que também adopte práticas sexuais seguras.
O diagnóstico de uma doença desta natureza causa revolta?
RA - Sem dúvida. Pontualmente, temos situações constrangedoras, sobretudo no que diz respeito à infecção pelo VIH porque ainda é uma infecção com muito estigma associado. Se calhar, das DST é aquela que é aquela que ainda tem um maior estigma associado apesar da informação circular com maior fluidez e nós tentarmos que isso aconteça até quando participamos em acções de prevenção, em que vamos às escolas falar com grupos de jovens, tentando sensibilizar para práticas preventivas e adopção de comportamentos seguros. Percebemos que há ainda um tabu, as pessoas têm dificuldade em falar sobre o vírus, a imaginar-se a contactar com uma pessoa que é portadora do vírus! As pessoas não têm a informação escrita na testa e não têm de ter. Lutamos para eliminar esse estigma do que é uma pessoa com VIH porque sabemos que se cumprir a medicação e tiver comportamentos seguros não transmite o vírus. O vírus fica indetectável no seu organismo e a pessoa não tem capacidade de o transmitir. O nosso objectivo é dar a conhecer e quebrar alguns mitos relacionados com o contacto com pessoas com o VIH. É uma infecção que se transmite por contactos de risco, mas é possível conviver e ter uma relação com uma pessoa infectada com o vírus sem correr qualquer risco de transmissão.
Tentamos quebrar esse tabu para que as pessoas se sintam normalmente integradas. Acho que o estigma já teve uma dimensão maior! Na minha experiência nunca fui confrontada com nenhuma situação de rejeição extrema.
Ao tomar conhecimento de que está infectada, a pessoa fica a saber que é para a vida e tem que aceitar a doença para si e para os outros... Na forma como se vai ver na sua circunstância, na sua vida e nas relações com as pessoas que fazem parte do seu mundo! Há todo um processo de aceitação da doença.
E um compromisso na responsabilidade que o portador do VIH passa a ter na sua relação com os outros?
RA - Quando fazemos o diagnóstico de uma DST, uma das premissas da consulta é a sensibilização da pessoa para o conhecimento da infecção que ela tem e para a necessidade do rastreio dos contactos de risco. A pessoa deve sensibilizar aqueles com quem terá mantido um contacto de risco para fazerem um rastreio.
O verão aumenta a probabilidade de contactos de risco de DST?
RA - Arrisco a dizer que o verão já não é a altura do ano mais propícia a que isso aconteça. É inevitável que a mobilidade, o aumento da circulação de pessoas... As práticas sociais mudaram e quando têm comportamentos de risco também sabem que podem recorrer aos serviços de saúde, fazem rastreios na comunidade com mais regularidade e isso faz com que seja possível identificar mais casos. A probabilidade é um pouco transversal ao longo do ano, porque somos cidadãos do mundo.
O uso de preservativo nos contactos sexuais é o comportamento que poderá travar esse risco?
RA - A base da prevenção das DST é a utilização do preservativo, embora outras medidas também sejam importantes como o tipo de práticas sexuais, porque os comportamentos têm mudado ao longo do tempo e há uma maior desinibição associada a essas práticas! Porém, a utilização do preservativo é a forma mais segura e eficaz de evitar a transmissão de infecções sexuais. No caso do VIH, há a medicação que se a pessoa cumprir não transmite esse vírus. Para as outras não temos essa forma de o fazer. Podemos tratar pontualmente, mas não evitar uma reinfecção e a assim a transmissão através do contacto com os doentes.
As DST são apenas uma parte do grande conjunto de doenças infecciosas?
RA - Na nossa consulta de doenças infecciosas, seguimos pacientes com outras doenças que não as sexualmente transmissíveis. Ao nível internamento ou urgência, falar de doenças infecciosas é um mundo... Porque uma infecção urinária é um diagnóstico muito comum, as pneumonias, as endocardites, infecções do sistema nervoso central... São doenças infecciosas que tratamos em larga escala diariamente no nosso Hospital.
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