O jogo político

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É muito difícil para qualquer cidadão português passar ao lado da situação de instabilidade política em que o país entrou. Um parlamento fragmentado e a tendência

nacional dos partidos políticos para verem muito pouco além do seu umbigo, criou a situação atual. Na Europa, e na Alemanha em particular, há uma tendência de se privilegiar a governabilidade do país, aceitando-se a maioria que saiu das eleições, mesmo que ela, como acontece em Portugal, seja frágil. Tanto o SPD como a CDU alemã garantem a governabilidade do partido que ganha. Este é um exercício de responsabilidade que a maioria dos cidadãos esperam dos eleitos e que, sinceramente, gostaria de ver em Portugal.

Tendo o condicionamento das minhas próprias opções políticas, vejo esta crise política com desagrado e tento (não sei se o consigo) ver os erros cometidos, sobretudo aqueles que Luís Montenegro poderia perfeitamente ter evitado.

O facto de ter o privilégio de ter uma voz escrita neste jornal obriga-me, creio, a não assumir um papel de evangelizador, mas, sobretudo, de refletir com quem me lê as preocupações que todos temos e a melhor forma de democraticamente, em conjunto, pela reflexão, fazermos as escolhas que, a cada momento, entendemos importantes para o país.

Não vou, neste artigo, fazer a cronologia dolorosa dos últimos tempos. Vou tentar (espero que bem) refletir sobre aquilo que levou ao Governo a apresentar uma moção de confiança no Parlamento sabendo, à partida, que o PS e o Chega votariam contra e fariam com que o Governo caísse.

O ponto de não retorno começou, em minha opinião, pelo anúncio do PS em pôr a funcionar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao Primeiro-Ministro, por direito potestativo que os partidos têm, isto é, pela prerrogativa de agendarem essa iniciativa sem haver necessidade de uma maioria para a pôr em marcha.

O PS disse, claramente, que iria convocar a CPI por, em seu entender, as explicações de Montenegro não terem sido suficientes apesar da discussão havida, basicamente sobre o mesmo assunto, aquando das moções de censura do Chega e do PCP, que o PS não votou favoravelmente.

O PS abriu a Caixa de Pandora nunca antes utilizada na democracia portuguesa, nem com Sócrates! Já vimos algumas CPI que fizeram jus ao trabalho parlamentar, outras nem por isso, mas é um mecanismo democrático legítimo que requer, acima de tudo, responsabilidade e parcimónia.

Para qualquer um de nós é fácil antever o que nos esperaria, enquanto país, com uma CPI deste tipo a todo o vapor. O Primeiro-Ministro não a poderia ter aceitado, mas, ainda assim, pareceu-me, fez um esforço para que ela se desse em tempo minimamente razoável para produzir conclusões. O PS não aceitou por motivos, para mim, óbvios: a CPI não tinha a preocupação de esclarecer, mas, tão só, manter o Governo em desgaste contínuo durante o maior tempo possível, possibilitando que o PS ganhasse eleitoralmente com esse desgaste. Iríamos ver, certamente, semana após semana, as idas e vindas do Primeiro-Ministro, as tiradas populistas de Ventura ou Pedro Nuno Santos, numa espécie de Inquisição Moderna, paralisante para o país, para a economia, para o PRR (do qual ainda só se executaram pouco mais de um terço dos fundos disponíveis e que terminará em 2026). Depois iria ser chamada certamente a mulher, os filhos, pessoas que sem qualquer traquejo político ou retórico (suponho) seriam trituradas por tarimbados espertalhões.

Não entendo, sequer, como Luís Montenegro pôs a hipótese de aceitar a CPI, sabendo, como sabia, que o que estava ali em causa era mais um truque, a montagem de um degradante espetáculo mediático, do que uma tentativa de esclarecimento.

Quando o PS fala, e bem, de que o Chega utiliza os mecanismos democráticos para sabotar a democracia, não é capaz de aplicar a si próprio esse pensamento. Mais: Pedro Nuno Santos deu de bandeja ao Chega o roteiro para a sua ação política nos próximos anos. Um partido que se alimenta do caos, que só dele cresce e se alimenta, poderá, doravante, utilizar o mesmo truque. A caixa foi aberta.

As eleições legislativas serão, creio, perante o cenário dantesco que se perspetivava, um mal menor. E mesmo que chateados com tudo isto, é a nós, os eleitores, que cabe a palavra decisiva: essa é a virtude da democracia.

Desejar que, como pediu o presidente da República, se assista a um debate elevado que se foque nos problemas dos portugueses é tão ingénuo como achar que a CPI iria esclarecer o que quer que seja. Esperar que não saiam mais notícias, a conta-gotas, atacando a seriedade de Luís Montenegro, tem a mesma probabilidade de um Euromilhões. Caber-nos-á, no meio do fumo e dos cartazes, tentar perceber o que propõem afinal os partidos políticos. Esse é o esforço requerido a cada um de nós, a cada eleitor consciente.

Países há em quem nem não se vota, assiste-se impotente à realidade. E a democracia, tal como a vida, é para ser vivida e participada. E se possível compreendida com bom-senso. Mas talvez isso já seja pedir demais.


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