A nódoa na camisa

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O tempo político e mediático do populismo tornou fértil o terreno da discussão sobre a ética e a transparência, enquanto empobreceu a troca de argumentos sobre

projetos e ideias. A estratégia é conhecida e faz do soundbyte e da análise superficial a única arma dos seus protagonistas. É eficaz, porque na atualidade imediatista já ninguém “perde” tempo a aprofundar temas ou a refletir acerca das diversas dimensões envolvidas num determinado problema, deixando-se levar pelo julgamento sumário.

A prática é tão mais comum quanto mais longínquo ou improvável é o acesso ao poder por quem opta por esta via. E quando isso acontece, nada desmascara tão bem este tipo de populistas como a sua chegada a funções equivalentes àquelas que eram exercidas por quem era o alvo do seu apontar o dedo.

Nas últimas semanas, o partido português que melhor encarna este papel viu-se confrontado com um deputado acusado de roubo, outro de condução sob influência de álcool e ainda um terceiro acusado de abuso de menores. Por si, tudo isto seria grave. Mas reveste-se de maior polémica pela proveniência e particularidade dos acusados.

O Chega, desde que existe, dirige os seus ataques sobretudo à classe política.
Esse ataque está patente nas propostas extremadas sobre violadores e pedófilos, no discurso securitário e contra os criminosos, que a todos “prescreve” a prisão perpétua, a castração ou a deportação, caso não tenham a mesma cor de pele do seu líder. Contudo, e agora, quando confrontados com problemas dentro de portas, são rápidos a descartar aqueles que
arregimentaram à pressa e à custa desse mesmo discurso.

Estes factos julgam todos os militantes do Chega e seus simpatizantes? Claro que não. São imputáveis apenas aos próprios que terão praticado tais atos. E essa deveria ser a maior revelação para todos os outros: o discurso antipolítica é frágil e acabará, invariavelmente, por se virar contra nós.

A política é, e deve continuar a ser, uma arte nobre exercida diariamente por milhares de cidadãos comprometidos com as suas comunidades. O serviço público é a mais exigente e satisfatória das funções, para quem o valoriza. E são hoje já muito menos aqueles que se demonstram disponíveis para o fazer.

Compete-nos a todos, especialmente àqueles que têm essas responsabilidades ou almejam tê-las, valorizar quem se dedica à política, criticar construtivamente e a propor alternativas, no campo das ideias e dos projetos. A valorização da democracia e dos seus protagonistas é fundamental para voltar a captar os melhores quadros, os mais disponíveis e os mais bem preparados. Para voltar a captar aqueles que estão disponíveis a abdicar do recato, do anonimato, do conforto – em diferentes aspetos – para exercer uma atividade em prol do coletivo.

A alternativa que se apregoa – e que tem sido o caminho seguido nos últimos anos – terá como consequência o aparecimento de piores quadros disponíveis e o desaparecimento de quem entende que o limite entre a vontade de servir o outro e o direito à sua tranquilidade foi ultrapassado inabalavelmente. Nessa altura, estaremos a fazer o favor a quem pretende desqualificar a política para a substituir por regimes paratotalitários, a que “cheiram” alguns dos maiores populistas chegados ao poder por todo o mundo.

As proclamações permanentes sobre a nódoa da camisa do outro sairão amplificadas quando a primeira gota cair na nossa, especialmente se fizemos – ou se fizermos – da celestial clareza da nossa indumentária, parte central do nosso discurso.

Precisamos de valorizar a coerência de pensamento, a seriedade dos argumentos e a valia das alternativas. A arte nobre de exercer atividade política não pode ser arma de arremesso, especialmente quando queremos, legitimamente, substituir quem o exerce, com legitimidade.

Assim, neste tempo em que vivemos, e num ano tão propício a cedermos à tentação do impulso, de resultado imediato, saudemos aqueles que se dispõem a servir a causa pública, e coloquemos o debate nas propostas alternativas, durante todo o tempo.

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