Ragnarock
usou para a quarta ópera de “Der Ring des Nibelungen.” Isto porque não a queremos empregar no seu total, mas, antes e apoiando-nos no étimo proto-germânico de “regin” (cujo genitivo plural é “ragna”), atribuir, a esse composto da palavra, o sentido de “poderes dominantes” e não o do “deuses”. Convém ainda recordar que o outro étimo, o de “rock”, também pode ser entendido com mais significações para além da acima de “crepúsculo” e, entre elas, as de “renovação”, “desenvolvimento”.
Não se abordará nele, portanto, a decadência, e fim, de uns quaisquer “deuses”, mas, muito mais prosaicamente, tentarse-á discorrer sobre o presente decorrer duma civilização: a nossa, europeia. Isto porque esta, parece-nos, está a caminhar para uma sua profunda alteração. Que e consoante as correcções acima antecipadas, pode não corresponder à visão apocalítica que começa a emergir nas bocas do mundo opinativo (na sempre reminiscência da escatologia cristã e dos medos do milenarismo medieval).
Fechado este ponto e para prosseguirmos, há dois aspectos que é necessário desde já focar: um, a distinção entre tempo social e o individual; outro, a sequencialidade consequente do devir social. Quanto ao primeiro, que se crê de fácil anuência, pode-se dizer que as mutações do processo social são aferidas por séculos, no mínimo, enquanto as de cada pessoa são-no por anos; do que resulta uma grande disparidade temporal de dinâmicas. E conectada com esta constatação está a da progressão das mentalidades (mentalidade social média), que e ainda que se as force, não se as consegue compaginar imediatamente com realidades que as contrariem e lhe sejam impostas. Por o que, por isso, tendem a reagir contra essas sempre violências, numa predisposição para regresso às condições do seu desenvolvimento natural (o pôr o carro à frente dos bois, nunca é, ou foi, a solução, como o processo histórico no-lo ensina abundantemente). Pontos, ambos estes, sintetizados em demasia e que mereciam uma maior pormenorização que, porém, a exiguidade do espaço não admite.
Depois, retornando ao nosso processo histórico, recordar o salto que foi dado nos fins do século XVIII com a Revolução Francesa, ao institucionalizar a figura única do ser humano como cidadão, corolário da sua bandeira de igualdade e ao, destarte, abolir as anteriores três classes: nobreza, clero e povo. E no saber que essa institucionalização não foi instantânea, pelo contrário tem sido demasiado morosa, por vezes conflituosa, sangrenta mesmo, com retrocessos e avanços, profundamente suada e que ainda se continua a processar. Aliás, basta atentarmos na singularidade corporal e a sequente pessoal, nas diferentes capacidades de conhecimentos, posse de património ou rendimentos e até, de certa maneira, estatuto social, para ser fácil concluir da estratificação ocorrente e das oponibilidades (talvez mais correcto, dificuldades) à concretização do princípio da igualdade, mesmo que apenas e tão só ipso iure. Isto, não obstante o muito que se tem avançado nos já dois séculos desde aquela revolução, mormente nestas últimas dezenas de anos e sem se olvidar a essencial Declaração Universal dos Direitos do Homem (súmula nunca atingida dos princípios que deveriam nortear a humanidade para uma sua melhor convivência global, pacífica e solidária). Sem, entretanto, se escamotear a noção objectiva de classes sociais, fruto da capacidade humana do fazer (que se conceitualiza, genericamente e com a maior amplidão com que se a possa entender, como “força de trabalho”), o que origina a distinção dicotómica dos que são seus fornecedores e os que dela se apropriam, directa ou indirectamente.
Entretanto e como decorre do que se disse atrás, nestas últimas décadas têm-se assistido a uma forte implementação dos direitos individuais. Assim, numa grandeza sem precedentes e que abrange vários quadrantes do estar social, paulatinamente ou de forma mais expressiva, massas populares ou minorias, têm vindo a exercer pressão crescente para lhes serem reconhecidos direitos que querem seus. Sejam estes de conjuntos ou, mais recentemente e até, individuais. Numa progressão que quanto a estes derradeiros, no presente e por uma implementação algo enviusada dos princípios da liberdade e igualdade, tem-se admitido não poderem sofrer de quaisquer condicionantes (o que, como já se escreveu, parece estar a fomentar a anomia). E dessa maneira, em catadupa, tem-se vindo a assistir a um crescendo de individualismos (acentuação do para si, em si e no desvio da inclusão, e participação, no colectivo), que, tudo o indica, remetem para a pessoa aspirações que só podem ser conquistadas na comunidade; ou talvez e tentando precisar, que só a evolução da mentalidade social pode conseguir efectivar de forma positiva.
Em qualquer caso e como resultado dessa pressão, desse caminhar da sociedade para a igualdade, a verdade é que ela está já a interferir nas áreas política e religiosa. Quanto à primeira, ao pôr em causa os princípios da social-democracia, por ser cada vez mais evidente que eles não avançam realmente nesse pretendido rumo e tão-somente ousam atenuar as desigualdades mais gritantes; o que está a causar o descrédito nas organizações políticas que os prosseguem. Quanto à religiosa e por referência à católica, para além da sua abertura a congéneres, as novas orientações que estão a ser tentadas estão bem sintetizadas nas expressões “casa comum“ e “todos, todos, todos“.
Mas há ainda outro fenómeno novo com que nos enfrentamos no dia a dia: o da denúncia e reprovação de quaisquer desigualdades. Sejam elas provindas de situações ou imputadas a pessoas. E numa vociferação amplificada, que as redes sociais e os meios de comunicação exploram à exaustão; ademais inflamadas por uma base de factos só parcialmente verídicos, ou que não o são tanto, ou e ainda, inverídicos. Criando-se com isso um ambiente de permanente suspeição, animosidade (malgrado e em muitos casos, ela corresponder ao despeito de quem não se sente com o benefício) e contestação cívica. Combate à desigualdade que, portanto, está na ordem do dia e aponta para uma fase mais aguda na concretização da igualdade.
É, pois, este o quadro que reflecte a instabilidade social que vivemos e que pressagia uma transição. Tal como ao crepúsculo se segue a noite, depois a aurora e, finalmente, outro dia. Na certeza, assim, não de um termo, mas e antes, duma sequência para uma nova composição, cujo esboço ainda se apresenta completamente esbatido.
Daí e nesta actualidade, optarmos pela tradução do título como “Crepúsculo dos Poderes Dominantes”.
Fundevila, 21 de Novembro de 2024