CUPIDITAS
O sentido da frase de um anónimo que sentenciou “the root of all evil is covetousness” é assaz remoto e como mandamento religioso
conta já bem mais de 2.000 anos, como se pode aprender do Decálogo 10 (Ex. 20.17). Decálogo que segundo a mesma fonte foi lavrado nas Tábuas da Lei, entregues pelo Senhor (YHVH) a Moisés no alto do monte Sinai (Ex.31.18).
Muito tempo depois, em plena Idade Média europeia, como pecado (integrado em, e com, alguns dos sete considerados capitais - avareza, soberba e luxúria -), mantinha-se como uma conduta censurável. Continuava, assim, a pesar sobre ela uma condenação. Condenação que o Catecismo da Igreja Católica aprovado por João Paulo II (25.06.1992) e por este ordenada a publicação (Fidei Depositum) em 11 de Outubro do mesmo ano, preserva como pecado mortal (1857, 1858) e capital (1866).
Por outro lado, essa reprobavilidade não era só religiosa, pois decorre também de valores da res publica e dos princípios basilares da República (igualdade e fraternidade - esta última, de algum modo e lato sensu, pode casar-se com os conceitos católicos da virtude teologal da caridade e das cardinais da justiça e temperança; fraternidade que no presente se pode, e deve, compaginar como solidariedade). Vê-se, assim, portanto e igualmente, que essas censuras sociais apontam na mesma direcção daquelas outras.
Longuíssimo e permanente trajecto de estigma cujas causas, pela sua perdurabilidade, provavelmente jazem nos ancestrais da espécie (mormente na nossa europeia e, agora, na pós-industrial), podendo, talvez e até, considerar-se a como uma sua característica inata. O que, aliás, permite ajuizar da sua concatenação com o fluir da matéria massiva; ou seja, com a sua intrínseca dinâmica de progressão, pois a cupiditas, como fenómeno social está compreendida naquela como uma realidade dela que efectivamente é. E neste particular humano, numa contínua intenção de apropriação de um sempre mais. Destarte, a sua negatividade não se poderá sediar naquela natural propensão.
Resultará ela, então, donde?
Mais uma vez um périplo.
Como parece verificar-se, sendo a nossa espécie eminentemente gregária, dos conjuntos mais elementares aos mais complexos e difusos que nela se concretizem, em todos eles, emergem as particularidades comportamentais comuns aos seus integrantes. E que serão, mais ou menos, absorvidas por esses colectivos consoante o grau de magnitude da força condicionante dos respectivos actos individuais universalizáveis.
Nesta perspectiva, quanto maior for a amplitude do grupo, menor será a quantidade daquelas que ele comungará, acabará por incorporar e assumir; isto sem prejuízo de as de maior intensidade poderem subsistirem da base ao topo.
Aceite esta proposição, fácil é concluir que o tudo o atrás trazido à colação nos três primeiros parágrafos se reportava, essencialmente, a condutas individuais. São elas, com efeito, que foram e tem sido criticáveis, tendo causado ao longo de toda a odisseia humana um conjunto de tragédias e sofrimentos incomensuráveis, mais ou menos conhecidos e documentados. E também promoveram a desigualdade, provocando distinções entre iguais e posteriormente disparidades geracionais. Tudo isto num mundo pleno de assimetrias espaciais e de organização social, o que impede generalizações face a realidades diversas e, em especial, com espectros culturais de muito difícil conciliação. Não reside aqui, porém, o intuito destas linhas, que se propõem um âmbito diverso, ainda que, também ele, algo circunscrito.
O que se visa então?
Como se escreveu acima, as sociedades fazem suas, mimetizam, condutas individuais. Adquirem as virtudes, e defeitos, dos seus membros como consequência da fusão de todos eles no conjunto que são. Tendem, portanto e dentro de cada relação ocorrente (uno/múltiplo), a adoptar as características que lhe sejam utilmente, ou por vezes não, adaptáveis. E nessa medida, repete-se, ainda e tanto mais quando essa apreensão corresponde a princípios elementares da matéria massiva; aqueles que cremos como os propulsionadores do que concebemos como a sua dinâmica progressiva de evolução, cujo processo, advindo do big-bang, passeou e afirmou-se neste subsequente estar de complexização que nos permite e em que estamos.
Entretanto e como germe que conduziu à imaginação deste texto, uma série de artigos que têm vindo a ser publicados sobre a necessidade de se acomodar a oferta turística às alterações climáticas de modo a, no mínimo, manter a procura actual e sobretudo, mesmo, a aspirar aumentá-la. Sempre o desejo do mais e sempre mais. E curiosamente neles não se vislumbra o tratar o problema no que ele tem de substancial: o combate a essas alterações, ou, se é que isso ainda é possível, o revertê-las. Sabendo-se, como hoje parece comprovado, que a acção humana (e o turismo de massas é um grande potenciador de efeitos negativos) é uma das causas dessa disfunção na normalidade do processo planetário, o que assusta é essa
omissão, esse o assobiar para o lado quanto ao cerne da questão, como se se o possa ignorar. Neste como em muitos outros, senão quase todos, os aspectos do nosso presente modus vivendi. E daí a lembrança da vetusta cupiditas. E este novo apontá-la, já não como um inconveniente individual, mas e de há tempos a esta parte, como próprio desta sociedade que somos.
É, pois, o acentuar dessa imputação aquilo que aqui se aborda. Com a agravante de aquele, o inconveniente, se ter infiltrado no sistema neoliberal, nomeadamente no seu perfil económico e aí ter-se tornado o seu primordial e imperioso leit motiv. E a intencional intrusão do nomeadamente permite, e quere-se, para ressalvar, e até excluir, aquelas actividades especializadas em que um progressivo saber, e concretizar (esse um, sobre menos, cada vez mais), têm um saldo social assaz positivo. O que, no entanto, não se passa no plano económico, onde permanentemente se tenta crescer sem olhar às consequências que essa atitude acarreta para o planeta, nossa única casa comum, que é do Homem e de todos, todos, todos. E essas consequências maléficas não são só as que afectam o percurso climático da Terra, mas também as que lhe causam danos irreversíveis e, ainda, as que exaurem recursos não renováveis (com todas as possíveis deficiências de medição, atente-se na pégada ecológica, que, este ano, terminou no princípio de Agosto). Numa combinação insana que, assim, põe em causa a viabilidade de um futuro de curto prazo (se comparado com a nossa, humana, antiguidade). Tanto mais grave quanto a previsão de durabilidade do sistema solar, ou da própria Terra, com tudo o que possa ter de fiabilidade, apontam para muito longas prevalências.
Não se pode aceitar, portanto, que se insista no induzir um desenfreado consumismo (com a inerente velocidade de vida), como se ele consistisse na lógica normal do desenvolvimento sequencial da sociedade. Lógica que, repete-se, é a do sistema neoliberal e gera a voracidade de riqueza (cupiditas), de que se aproveitam alguns, que, imbuídos dessa camisola e sem se preocuparem com os custos que recaem sobre os outros (aliás e ao que se está a constactar, acabará por se precipitar sobre todos), ou sobre a própria Terra, desdenham dos sinais de perigo, na ilusão de irreais soluções tecnológicas. O que, por conseguinte, torna indispensável, como parece ser cada vez mais patente, alterar o rumo da sociedade, por forma a fazer
prevalecer a preservação do bem do planeta e, claro, por arrasto, do espécie. Com essa perspectiva nunca é por demais rememorar a Parábola dos Cegos (Mateus, 15.14) e o célebre quadro de Pieter Bruegel, o velho, que a ilustra (facilmente acessível na net). E fechando, cita-se, actualizado, Cícero: “Quo usque tandem abutare, neoliberalismo, patientia nostra?/Quam diu etiam furor iste tuus eludet?”.(*)
(*) - Tradução wiki:
“Até quando, ..., abusarás da nossa paciência?
Por quanto tempo a tua loucura há-de zombar de nós?
Fundevila, 2 de Setembro de 2024