Modas & Bordados

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A mitificação que se faz do passado de cada um não está diretamente relacionado com qualidade desse passado em si, das coisas boas

que ele eventualmente comportava, mas, sobretudo, pela juventude que se tinha e se deixou de ter. Daí que o saudosismo pelas coisas de outrora é, acima de tudo, uma saudade imensa pela época em que se era jovem e havia tempo. Às vezes, até, demasiado.

É absolutamente inesquecível a primeira vez que amamos realmente alguém, mesmo com toda a insegurança que amar alguém comporta. Ainda hoje e em qualquer idade. É igualmente inesquecível a primeira vez que um livro, um filme, um poema, nos acerta em cheio. Pois quando nos acerta é sempre uma primeira vez. O mundo reconstrói-se e parece sempre diferente a partir daí. O tempo tende a impermeabilizar as sensações, mas há sempre uma frincha, um buraco, que escapou ao lento impermear da alma. E serão seguramente essas falhas a que nos deveremos, religiosamente, dedicar, para que o presente possa ser tão excitante quanto o passado.

O tempo encarrega-se, lentamente, de nos dar novas perspetivas que (muitas vezes) nos enriquecem. Chego a arrepiar-me com as coisas que se pensavam e diziam alarvemente quando eu era jovem e fico envergonhado pela forma bovina com que eu, tranquilamente, as ouvia. Com todos os defeitos que se possam escarafunchar nas modernas sociedades ocidentais têm-se, sem dúvida alguma, dado passos gigantescos contra os preconceitos mesquinhos, contra as desigualdades, contra os dogmas sociais. Parece sempre pouco, mas o caminho faz-se caminhando.
A única coisa que realmente me chateia é que haja, cada vez mais, um saudosismo doentio pelo preconceito antigo, ou se incensem sociedades antidemocráticas, movimentos religiosos e políticos anquilosados, ditatoriais, só porque são contra o Ocidente. O local onde, precisamente, essas pessoas podem verbalizar o seu intenso disparate, livremente.

As revistas e jornais antigos são uma autêntica cápsula do tempo. Caiu-me nas mãos um exemplar de uma revista feminina, a Modas e Bordados, de 1962, por iniciativa da minha namorada que tem uma atração pela boa estética vintage (mas não da “ética”!). É uma loucura.
Uma revista feminina, liderada nessa altura por Etelvina Lopes de Almeida, que foi deputada do PS na primeira legislatura, e, mais tarde, recebeu do presidente Mário Soares a comenda da Ordem de Mérito, é um contínuo tratado machista. Há sempre um artigo que consegue ir mais longe que o anterior. Chega a ser divertido, apesar de arrepiante.

Numa coluna sobre psicologia conclui-se que “a discórdia que existe, muitas vezes, entre homem e mulher, explica-se [pela] pouca elasticidade das mulheres que assim perturbam a harmonia, enquanto era tempo de salvar o amor e a vida em comum”. Mas a revista vai mais longe e avisa, noutro artigo, que 90% das mulheres insatisfeitas que se encantam por um amigo do marido vão ao engano, pois o homem tem duas facetas - a do homem e a do marido (esta não está mal vista, não senhor) - e se transformarem o amigo em marido vão-se arrepender, citando a experiência de uma mulher divorciada duas vezes. A revista para mulheres passa por Helena que desencadeou a guerra de Tróia e por citações de “filósofos” que afirmam que “as raparigas e framboesas já têm bicho antes de amadurecerem”. A revista deixa, entretanto, conselhos importantes para quando o marido entorna o copo de vinho na toalha posta de novo. Incitam as mulheres a não se irritarem pelo descuido, a não o recriminarem, a fazerem o esforço de, em alternativa, pensarem no vestido que comprarão no dia seguinte. Enternecedor. Descobri, finalmente, o que fazer quando a coisa azeda. No meio da discussão: ó Ana deixa lá isso e vai comprar um vestido amanhã. Era capaz de resultar. Pelo menos, pelo inusitado da situação, ganharia, talvez, uns quinze segundos de descanso retórico.

Por entre receitas culinária, conselhos de puericultura e moda, enternece-me e depois deixa-me perplexo uma reflexão sobre as mulheres que escolhem homens feios para poderem viver tranquilas, sem que “as outras mulheres tentem arrebatá-lo”. Será? penso eu no meu cérebro
pequenino de homem, sem as cínicas particularidades do cérebro feminino.
Deparamo-nos muitas vezes com frases nas redes sociais que apresentam pomposas “citações” de poetas, como Fernando Pessoa, que seria incapaz, conhecendo-o, de dizer as vulgaridades escritas que tantas vezes, despudoradamente, lhe atribuem. No entanto, a revista Modas e Bordados já estava à frente no aspeto das citações atribuíveis a escritores famosos. No artigo As mulheres são culpadas põe-se na pena de Oscar Wilde a seguinte frase: “as mulheres incitam o homem a criar obras-primas e impedem-nos de as realizar”. Oscar Wilde: esse incorrigível mulherengo!


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