Pontos de vista
Portugal é um país fantástico. Tem praias com areia a sério. Tem marisco rijo e um vinho com tantas e tão variadas castas
que parecemos um gigante geográfico. Tem gente simpática, sabedora, calorosa. Tem a família e uma história que nos alargou o retângulo bidimensional onde aterramos, para a tridimensional esfera que sonhamos, conhecemos, influenciamos. Tem eufemismos simpáticos como o “até logo”, quando não fazemos a mínima ideia se encontraremos essa pessoa nas próximas horas, ou, nunca mais. No entanto, segundo dados da OCDE, recentemente estampados no Expresso, somos o país da maior dependência de ansiolíticos, e o segundo, em antidepressivos e na prevalência da dependência crónica de fármacos para a cabeça. Batemos, neste aspeto, a Inglaterra, o Canadá, a Austrália, a Alemanha, com a facilidade com que o fazemos num jogo de hóquei patins. Somos os maiores! 15% da população está viciada em benzodiazepinas, não consegue dormir sem elas, enquanto quem as receitou, de forma indiscriminada, dorme tranquilamente num cruzeiro, pago, às Caraíbas.
O português já tem muitos anos e sabe que tudo pode ser relativizado, que não vale a pena enervar-se sem perceber (com tempo) o que está realmente a acontecer. Entre o sapiente “há mais marés que marinheiros” e a síndrome do “corno manso”, a linha que separa essas dimensões é muito ténue. Entre a filosofia e a doença não se distingue o limite. Os franceses têm uma unha encravada e manifestam-se ruidosamente junto ao Eliseu. Os portugueses têm a casa encravada por um viaduto em construção e vão, de chapéu na mão, pedir ao senhor presidente que os desencrave, e depois de muita papelada, afinal, nada desencrava, mas é simpático, coitado.
No momento em que escrevo esta crónica, muito cedo diga-se, o barulho é ensurdecedor pois o jardineiro do meu vizinho, coitado, precisa de pôr os bufadores a trabalhar logo às primeiras horas da manhã, rrrrrrrrrrrrrrrrrrrr. Ponho os auscultadores com música para me poder concentrar na tarefa de escrever. Queixo-me à Câmara? É capaz de não ser boa ideia, pois a empresa municipal responsável pela limpeza pública também espalha, por toda a cidade, o seu barulhento labor matinal. Queixo-me ao vizinho? Também não, pois, por coincidência, nunca está quando isto acontece. Avoco assim, como os portugueses, para mim, uma estranha mansidão.
Em Portugal assume-se, com muita seriedade, as normas europeias para os particulares, nunca para as instituições ligadas ao Estado, coitadas. Há uns anos a sanha contra os galheteiros nos restaurantes foi um exercício visível da estupidez autóctone. Italianos e franceses limparam o rabo às normas, relativamente aos seus deliciosos queijos bolorentos ou às suas comidas ancestrais. Era uma questão cultural, disseram, e assim arrumaram com o assunto. Nós não.
Mas estamos muito à frente. Daquilo de que mais gostamos é da expressão “modernização administrativa”. Parte-se do princípio que as nossas gentes têm uma desenvoltura tecnológica ao nível dos hackers russos. Mas não têm. Quão frequente é ver gente perdida na estação de comboio pois não há uma única pessoa com quem falar? Só máquinas e, com sorte, uma pessoa simpática que ajuda o cliente na missão que a CP deveria assegurar. E os mais velhos a receberem modernas receitas médicas por telefone? Quando para telefonarem à filha precisam de rememorar a operação fazer uma simples chamada. E quando alguém que confunde um ecrã de TV com um monitor de computador tem de preencher, rápida e eficazmente, um ficheiro on-line? Não interessa, que aprenda!
Tudo mudou quando se passou a chamar seniores aos velhos. Os velhos não sabem, mas como (agora) são todos seniores têm que saber do que não sabem e serem modernos, mesmo que analfabetos.
Com tanta modernidade, as empresas particulares alinham no festim do abuso, perante o absoluto mutismo e inação das entidades do Estado que nos deveriam proteger. Se temos um problema num serviço que pagamos o calvário está garantido. Prima X, prima Y, e até nos perguntam se queremos que as perguntas sejam em inglês! Veja-se a qualidade. Já me aconteceu, com a EDP, de ter que descobrir uma data de códigos que se não fosse o meu mestrado em novas tecnologias, não conseguiria descortinar. No entanto, condoem-se de nós quando não temos problemas, têm saudades, telefonam-nos, de viva voz, para fazermos um upgrade do serviço e dão-nos, simpáticos, condições excecionais de crédito. Queridos. E são muito amigos do ambiente: temos que ter o telemóvel para ter acesso à ementa no restaurante, que, paradoxalmente, tem o multibanco avariado. Dizem-nos eles, coitados. Até a assistência em viagem já se modernizou e atende automaticamente a nossa infelicidade. Prima X, prima Y, e a máquina pergunta-nos onde está o seu carro? Não sabemos, estamos no meio de uma estrada municipal, é de noite e estamos desesperados. Ainda bem que trouxe a manta, vou dormir por aqui até encontrar um ser humano que me possa esclarecer onde estou. Espero que não seja um jardineiro com um bufador. Antes perdido.
Percorro, de momento, através da instituição a que pertenço, um calvário com a inefável burocracia da Caixa Geral de Depósitos. Não consigo fazer pagamentos pois todos os dirigentes da instituição têm que ser cadastrados religiosamente, com a minucia que o FBI não possui nos seus secretos ficheiros para os mais perigosos criminosos internacionais. Mas ... vamos com calma, respiremos fundo, enquanto os serviços de cabo - que pagamos- nos impingem a publicidade a um chá. São só 30 segundos para podermos ver o telejornal que perdemos. Não vale a pena enervarmo-nos e ter que levar Portugal ainda mais para cima no ranking dos ansiolíticos. Nós é que somos modernos. Ainda há pouco, num festival de música em Itália, ninguém me revistou à procura de uma perigosa sande de queijo. Tudo tranquilo, pois, eles são uns baldas e nós rigorosos.
E os espanhóis, que miséria. Vi lá um concerto, num auditório maior do que o de Vila Flor, em que as pessoas podiam tirar fotografias ao espetáculo e trazerem cerveja para a sala: selvagens!
Já agora: a cerveja era a metade do preço daquele que pagamos nas bancas dos festivais nacionais. Coitados dos italianos e espanhóis, sempre tão pobres.
Mas mudemos de assunto. A Muralha apresenta, com o apoio da Oficina, a sua exposição das Gualterianas: Guimarães, pontos de vista. Uma mostra de imagens da sua Coleção de Fotografia, em formato de vídeo, projetado numa das lojas da Rua Paio Galvão, do maravilhoso projeto de Mercado Municipal (infelizmente abandonado na sua função) do Arquiteto Marques da Silva. A projeção será feita à noite, a partir de 25 de julho, mostrando vistas antigas Sobre a Cidade (dos vários pontos cardeais) e Da Cidade (usando os pontos de defesa das antigas torres/portas da muralha medieval de Guimarães). Vejamos, então, os pontos de vista que ainda podemos ver, imaginemos aqueles que perdemos ou os muitos que, com o tempo e o “progresso”, se perderão.
Vejamos imagens de um tempo em que não havia prima X, prima Y, nem modernização administrativa e em que os jardineiros utilizavam a, silenciosa, vassoura. A não perder.