Da caverna à casa e...

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Em semanas passadas o Público editou um artigo de opinião em que, às tantas, se escrevia que a família gozava de uma antiguidade

de centenas de milhares de anos. Sem tal se poder classificar como uma falsa notícia, tal afirmação, porém, não parece minimamente admissível segundo o conceito que daquela ainda se conserva. Isto, porque o que se sabe do percurso histórico da raça não permite afiançar tal conclusão. Sem prejuízo de que, aquela e como célula social básica, nem sequer ter sido, e ser, a única realidade organizativa primária; embora seja a ainda incontestavelmente dominante. E no que nos toca, desde já se o enuncia, foi a que serviu de suporte às sociedades humanas que, da Mesopotâmia ao todo da bacia mediterrânea e até aos confins escandinavos, deu origem àquilo que chamamos civilização europeia. Ou seja, assim perece ter sido desde que a raça se sedentarizou por esta parte do continente euro-asiático e por ela permanece; ainda que com aportes externos vários. Situação que, similarmente, se verificou por outros azimutes do planeta; o que, no entanto e por não ser o nosso, se os descuidarão.

Em qualquer caso e antes de se entrar propriamente na exposição justificativa do emprego do título acima, parece imperioso chamar à colação alguns saberes adquiridos e que se podem ter por devidamente comprovados; e que vão sendo cada vez mais aprofundados. Assim, no absoluto da plenitude cósmica, no seu uno infindamente fragmentado, o que se supõe do seu ser após o big-bang, é uma sequencialidade consequente que, progressiva ou regressiva para o nosso apreender, vai explicando todos esses seus existires espaço-temporais e, logo, qualquer ocorrência deste presente com que nos deparamos. Essa, pois, sequência (dinâmica, movimento, evolução ou o que quer que possa conceber daquilo que dela conseguimos reconhecer), foi quem nos trouxe, das partículas elementares, energias e forças, à biosfera no tudo que esta contempla (em que inexoravelmente estamos incluídos), bem como a todo e qualquer outro fenómeno, como o aqui social. É, pois, a essa ainda insuficientemente aprendida materialidade massiva que se tem que reduzir a explicação de qualquer coisa que se verifique. Quedemo-nos, assim e destarte, com essa ideia de uma sequência onde não há astaticidades. E que quaisquer efeitos, resultados verificados em devir, têm sempre as suas causas, sejam-nos elas perceptíveis ou não e que, por outra parte, eles são imediatamente inseridos no decorrer do processo em que acontecem e passam a nele concorrer.

Retenha-se, assim, a noção de que a sequencialidade é a essência da matéria massiva e que, por conseguinte, nada nela é imóvel. E atenhamo-nos, ainda, a que essa sequencialidade se processa em diversificações não homogéneas para, assim, potenciar ao máximo a progressão geométrica da complexização da matéria massiva.
Proposições últimas estas que, aplicadas à dita biosfera e logo à nossa espécie, nos confinam à reprodução e, nesta, à miscigenação. E, claro, sendo essa a característica da matéria massiva (e, portanto, do todo do nosso corpo), ela preside a todos os instintos a que estamos submetidos, por mais diluídos que estes se encontrem por força de condicionantes sociais.

Feita esta assaz sintética circunvolução positivista, regressemos, entretanto, àquela que tem sido a unidade base das nossas sociedades: a família. E sem se a pretender definir, sempre se acrescentará que se a pode ver como uma estrutura monogâmica hierarquizada, centrada num casal e abrangendo os seus descendentes e, eventualmente, ascendentes, afins e parentes colaterais.
Entretanto e por uma questão de metodologia discursiva, advém ainda a necessária invasão de mais um curto parágrafo para, apenas, atestar que a sequencialidade no fenómeno família está intrinsecamente ligada à das relações de produção que se verifiquem em cada sociedade e tempo. Sem se postergar que, para seu início, igualmente concorreram a morfologia da crosta terrestre e o clima.

Posto isto e tendo-se começado por asseverar que a família, na noção que dela ainda se tem, aparece e afirma-se, sobretudo, se não mesmo, a partir da sedentarização, convém lembrar que há alguns milhares de anos e lá por o Crescente Fértil, já ocorriam assentamentos humanos permanentes (cidades), cujos vestígios estão detectados e são o documento comprovativo da habitação unifamiliar. Isto é, da família. Depois e como se avançou no parágrafo anterior, durante milénios, essa célula familiar esteve primordialmente subordinada à exploração agrícola, nas múltiplas facetas em que esta se foi sequenciando e que quase sempre apontavam para uma sua constituição densa, malgrado as fracas produtividades, as guerras, as doenças (mormente as pestes), as péssimas condições sanitárias e habitacionais, as fomes e as catástrofes naturais. Sem prejuízo de, simultaneamente, nos meios aldeães (burgos) terem vindo a aparecer, e desenvolver, aglomerações que, pela divisão do trabalho, se foram dedicando à produção não agrícola ou a serviços. Situação derradeira esta que se tornou multiplicadora após a revolução industrial. E que, na idade contemporânea, com a supremacia hegemónica dos sectores secundário e terciário, promoveu concentrações populacionais de forma avassaladoramente crescente e o florescimento duma cultura urbana, circunstâncias que, no seu suceder, determinaram alterações modais nas relações de produção, com rápidos e cada vez mais acelerados efeitos na sequencialidade das nossas sociedades. Sem se detalharem especificadamente as causas dessa aceleração, pode-se, porém, adiantar a do desenvolvimento económico incrementado progressivamente pela lógica capitalista. E por essa sua dinâmica, coadjuvada por a da ciência e tecnologia que a alimenta. O que tem vindo a reformular a trama das nossas sociedades do ponto de vista do seu habitat e também do seu modus vivendi. Neste último aspecto a afectação da família é por demais evidente. E assim em algumas dezenas de anos a realidade familiar tipo alterou-se substancialmente, pelo que já tem pouca consonância com a de meados do século passado.

Ora sabendo-se, como se viu antes, que a reprodução e a miscigenação comandam a psique humana, logo se compreenderá que, no processo histórico das nossas sociedades e ao longo da sua peregrinação, se fossem enquistando princípios que potenciassem a sequencialidade consequente dessas características materiais, através dum primeiro momento de homogeneidade genética para um subsequente de diversificação. Nesse sentido e mais que normas de direito positivo, formulações éticas e religiosas aplicáveis aos agregados familiares traduziam essa exigência natural, quer compelindo à reprodução, quer recusando-a entre similares identidades genéticas. O que, espontaneamente, foi estagnando e fechando a família, como família. Modelo este que as actuais condições sociais contrariam, pois a urbe e a explosão dos direitos individuais em detrimento das obrigações colectivas, vão, parece, denunciando a sua incompatibilidade. Ou pelo menos tal se pode conjecturar.

No entanto e é bom que se atente nisso, a família como base social, era a creche, o infantário e a instrução primária (perdoe-se o arcaico desta derradeira invocação), porque, segundo o provérbio, de menino se torce o pepino ou, também, como se falava, que a educação se bebia com o leite materno, era a casa o local em que se ia industriando o rebento à futura vida numa comunidade mais ampla e sucessivamente alargada.
Era, portanto, essa convivência grupal, essa integração ab ovo num núcleo com usos e regras próprias, com hierarquias, direitos e deveres, que iam imbuindo no infante a consciência de pertença, da consanguinidade ao território (dualidade bem expressa pelos patronímicos e toponímicos que assumimos) e que lhe permitiam uma identidade própria e propicia à inserção na comunidade. Simplesmente, muito desse universo ainda presente em quase todo o século passado, está-se a diluir se, esvaindo-se numa urbanidade ferozmente individualista e quiçá, até, egoísta. E sendo aquela, a família, o chão do caminho que trilhamos, os momentos da sequencialidade que estamos a percorrer, a verdade é que não se atina, vislumbra, o que a ela, se desaparecida, se lhe seguirá. Daí, o título inconclusivo, aberto, a que se poderá, talvez e apenas, ainda, aditar “DESTA PARA ...”

Fundevila,
20 de Julho de 2024


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