“ELECTIONS, PIÈGE À CONS!”
a diferença entre a afirmação contestatária tout court e a mera questionação da democracia representativa.
Democracia representativa que, na sua vertente de sufrágio universal e em Portugal, vai para meio século. Muito jovem, portanto, mas que já enferma dos achaques das algo mais idosas de países que igualmente se dizem democracias. E o engraçado desta pretensão é que, nos pioneiros da representatividade (EUA e França), teóricos que estiveram envolvidos na criação dessa nova forma de organização política asseveraram, preto no branco, que ela não correspondia à democracia e que mesmo, de certa maneira, lhe era oposta.
Em qualquer caso, o que por esses tempos parecia inquestionável é que essa modalidade de organização política assentava em dois pilares; o deliberativo e o executivo. Sendo que, sempre, o primeiro era o fulcro da representatividade directa. O outro podia não o ser, como entre nós sucede com o Governo. E também que, como já se o disse em anterior escrito, face à dimensão das nações, cedo se impôs a necessidade de se estatuírem hierarquias orgânicas e que aquele princípio dicotómico fosse mantido em cada uma delas.
Asserções que se creem pacíficas e resultam implícitas da Lei que nos rege. Ora o que ao presente se assiste neste rectângulo ribeirinho, e fala, é que há uma aparente inoperatividade do sistema representativo, dir-se-á mesmo uma sua crise que, geralmente, se inculca a um divórcio entre os representados e os representantes. Daí o poder perguntar-se da razão desse desfasamento e se será apenas isso?
Uma coisa parece imediatamente perceptível e com um agravamento que se vem intensificando nos decorrer dos anos.
Qual seja? O da personalização. O de se focar no indivíduo o cerne das atenções e depois também, até, centrá-las em apenas alguns. O sucessivo suceder dos actos eleitorais demonstram-no bem. E como estamos muito próximos dos dois últimos, ambos para órgãos teoricamente deliberativos, deve ser fácil convir que, dos milhares, ou centenas na mais próxima, de candidatos que a elas concorreram, a audição e visualização concentrou-se nos cabeças de lista de cada uma das propostas partidárias (ou até e melhor, nos das mais votadas anteriormente e inclusivamente, nas nacionais, independentemente da sua não pertença ao respectivo círculo eleitoral; com a ainda agravante, nestas, de uma permanente justa entre os dois previsíveis aspirantes a primeiro ministro que, como se sabe, não é eleito). Temos logo aqui uma subalternização que pode traduzir que os restantes não são importantes, não contam (não representam, eles mesmos, as vontades que neles foram delegadas), ou, então, que a visão que os ditos chefes de fila transmitem é a absoluta verdade representada a que, portanto, todos os restantes estão sujeitos, sem qualquer hipótese de disrupção individual; o que traduziria, pode-se pensá-lo, uma concretização de férrea disciplina partidária própria de regimes autoritários. Fenómeno este que, assim, é desde logo redutor; tanto mais que é impingido mediaticamente à exaustão e ad libitum.
Além de, ademais, um quase total prejuízo da elucidação dos programas políticos que deveriam ser os motivadores das opções dos eleitores e isso, ainda, agravado pelo quase exclusivo realce de quezílias conjunturais vendáveis e como tal utilizadas. Circunstâncias estas que, porém, não se prendem com a representatividade e por isso, com esta simples observação, por ela se fica.
Prosseguindo, a verdade é que ainda acresce outro fenómeno que tem vindo a ganhar força: a crescente preponderância deliberativa dos executivos. Situação que está ligada ao simultâneo respaldo que os órgãos deliberativos, abdicando de competências próprias e, ou, de um aturado trabalho de análise construtivo para com a sociedade que abrangem, se limitarem, maioritariamente, a sufragar directrizes que lhe são submetidas. E se na Assembleia da República esta dependência não é tão notória, nas do poder local ela é demasiado explícita.
Crê-se, por conseguinte, que a conjugação destes dois factores contribuíram para, e permanecem a demovê-la, a redução da imprescindível cultura participativa que, entretanto, vai subsistindo a níveis cada vez mais baixos. E consequentemente encaminham o cidadão para o desinteresse na representação. Como o maior partido (abstenção + votos brancos) destas duas derradeiras eleições assim o comprova (numa, aliás, constante de há mais de quarenta anos). Isto numa espécie de simbiose tipo pescadinha de rabo na boca, porque a falta dessa cultura também assenta na ausência de participação que, como se sabe da experiência da vida, por si induz ao interesse na e para a intervenção. Sim, porque o mexer na massa, no progressivo e seguinte socá-la, cozê-la, provoca uma reacção que conduz ao redobrado gostar de se fazer e a, posteriormente e até, ao querer realizá-lo em si. Contrariamente o ver, e sentir, que as coisas passam ao lado, num continuado persistente, provoca a lassidão que é motivo de afastamento, ou de o agastamento que se traduz numa imponderada revolta contra o status quo. Causas estas que, portanto, fazem convergir para o, e no, individuo uma visão de insatisfação (digamos mesmo frustração) pelo que lhe é negado e a que se julga com pleno direito. Encerrando-o, assim, em si e a perder a noção do colectivo, ou seja. de que esse tipo de recusa não o visa exclusivamente, mas sim a um conjunto, por mais reduzido ou amplo que ele possa ser constituído. E isto porque, enfatiza-se o, em qualquer sociedade e em razão da sua intrínseca essência, aquela perseverante desmotivação de participação é nefasta, porque obsta à generalização e à subsequente busca de uma solução que, entretanto, apenas o colectivo terá capacidade para encontrar e resolver.
Nesta altura da oração e para quem disso tenha memórias, ocorre lembrar os primeiros anos pós 25 de Abril, em que um pouco por todo lado, comissões de moradores ou quejandos agrupamentos cidadãos se mobilizavam, e mobilizaram, para resolverem, em conjunto, problemas que existiam e os afligiam, inflamados que se encontravam dum espírito de pertença e parceria. E mesmo, também e como é facilmente verificável, os níveis de afluência às então eleições.
Depois, pouco a pouco, o desânimo, a desilusão e o desinteresse.
É que a democracia não pode ser reduzida à tão só submersão do papel nas urnas e, depois, o vazio. Esse simples gesto, convenhamos, não chega para indigitar uma qualquer efectiva representatividade. Tanto mais que, ao que se vislumbra e facilmente se constata, o que se verifica é que há um punhado de políticos e tecnocratas que decidem sobre tudo e mais alguma coisa, ao arrepio a qualquer audição, por mais ténue que ela seja (aliás, as consultas públicas obrigatórias, quando têm mesmo de suceder, são um ilusório arremedo de auscultação, porque incidem sobre propostas acabadas, normalmente muito técnicas e sem grande possibilidade de discussão, esclarecimento e formulação de alternativas devidamente sustentadas; além destas tidas ingerências não se coadunarem com uns prazos sempre muito reduzidos). Mas é isso que temos, por mais que se encha a boca com as excelências do sistema. E quase sempre com o silenciamento das alternativas, das previstas e que ainda subsistem (Jorge Miranda, no plano orgânico, a algumas, ironicamente, di-las caducadas), ou das mais que seriam precisas.
Ora se é este o nosso presente nacional, que adiantar sobre o da União Europeia? Aí nem vale a pena falar de representatividade, porque a ilusória e muitíssimo parca que por lá ocorre, assassina da dualidade do deliberativo e do executivo, abertamente, concentra o poder nos mesmos punhados de políticos e tecnocratas que a todos nos dominam e cozinham a nossa vida presente, ou a futura.
Será isto, pois, a democracia, ou é só uma fachada? E uma constante adjectivação para aqueles que detêm o efectivo poder de conduzir o rebanho e que não estão dispostos a abdicar dele, nem a deixarem de satisfazer os primordiais interesses duma classe.
Fundevila,
17 de Junho de 2024