As fotocopiadoras nossas amigas
O primeiro e mais fascinante salto tecnológico que mudou (para muito melhor) a minha vida foi a fotocopiadora.
Aí por volta do final dos anos 70, com a popularização e acessibilidade da fotocopiadora, de repente, o mundo abriu-se-nos de maneira absolutamente radiosa. Já não era preciso ir às aulas apanhar o pormenor maroto que o senhor professor guardava para a sua exposição teórica, era só fotocopiar uma boa fonte. Já não era necessário empenhar a mobília para comprar aquele livro técnico importado. A fotocopiadora emparceirava assim, de forma extraordinariamente útil, com o outro meio profundamente democrático da contrafação juvenil: a cassete. A fotocopiadora retirou à nossa preguiça individual, de forma redentora, o terrível peso da culpa de faltar às aulas.
Muitas coisas fantásticas se inventaram antes e depois da fotocopiadora. Os Walkman, o cartão multibanco, a caneta BIC, a Aspirina, ou o papel higiénico, mas nenhum foi capaz, face à situação anterior, de dar um salto cronológico tão grande. São quase 900 anos que distam entre os monges copistas e as fotocopiadoras. E antes delas só nos restava, ao nível académico, ser monges copistas, e rápidos, pois o caderno fazia sempre falta ao seu legítimo proprietário. Sim, eu sei que existia o interessante papel químico, mas isso só era exequível para corporações empresariais e bordadeiras, não se aplicava a estudantes.
A fotocopiadora trouxe, como outras grandes invenções, todo um ambiente novo e próprio às exigências e particularidades da coisa. O “dinheiro para fotocópias” foi, sem dúvida, a mais histriónica das expressões então utilizadas pelos estudantes.
Como a necessidade de fotocópias era uma espécie de buraco negro, complexo quanto às reais necessidades que implicava, os progenitores, não preparados para esta nova realidade, davam dinheiro para elas -as fotocópias - pois aquilo se lhes afigurava uma necessidade premente a que tinham de atender. E ao bom jeito nacional a coisa ganhou foros de abuso sistemático. Tanto assim o era que, aos poucos, os pais começaram a desconfiar da necessidade de tanto dinheiro para fotocópias, geralmente gasta em copos e outras atividades lúdicas, digamos assim. Na minha República de Coimbra, o pai de um amigo meu, perante os insistentes pedidos de reforço de “dinheiro para fotocópias”, sugeriu ao filho se não seria mais económico ele comprar-lhe uma fotocopiadora. Às vezes era preciso ser mais parcimonioso nas “fotocópias” ...
Os mais novos não têm noção disso, mas, em meados dos anos 80, a profusão de casas de fotocópias era uma espécie de praga comercial que, hoje, só tem paralelo nas casas de venda de óculos. Havia fotocopiadoras por todo o lado, especialmente nas cidades universitárias. Se no início as primeiras fotocopiadoras foram adotadas pelas livrarias e papelarias, rapidamente ganharam autonomia para serem apenas casas de fotocópias e encadernações e passaram a invadir outros negócios inesperados. Quando chegamos então à designação de Centro de Cópias, por substituição da Casa de Fotocópias, a coisa ganhou mesmo um tom estratosférico. Toda a gente queria ter uma fotocopiadora, essa possibilidade era uma espécie de licença da Santa Casa da Misericórdia. Até em Coimbra, juro, vi na porta de uma agência funerária o seguinte cartaz: EXECUTAM-SE FOTOCÓPIAS. Maravilhoso. Entre dois enterros, executavam-se cópias da sebenta de Direito Penal ou do famoso livro de Química Orgânica do Allinger. Mesmo assim, apesar do inusitado local, executar dava ao ato um tom mais nobre e sério à função de fotocopiar, do que o vulgar “tiram-se”. O executar era aristocrático, o tirar plebeu.
Bebemos demasiada cultura anglo-americana, tantas vezes com pouca imaginação ou, no mínimo, deslocada da nossa realidade autóctone. A designação de geração, como X, Y ou Z, é de uma infinita pobreza de imaginação. Em Portugal é-se mais imaginativo e deveriam adotar-se as nossas designações, como a de Vicente Jorge Silva, em 1994, para a geração nascida nos meados dos anos 70 como “geração rasca”, e as posteriores adaptações para as atuais como “geração à rasca”. Para a minha, dos nascidos em meados dos anos 60, não me importaria que nos chamassem “geração fotocopiadora”. Teria um duplo significado: o do amor ao dispositivo propriamente dito, mas, igualmente, da nossa capacidade de fotocopiarmos rapidamente o outro.
A fotocopiadora foi o nosso primeiro amor tecnológico, muito mais útil e impactante que o ZX Spectrum de 8 bits. E os primeiros amores nunca se esquecem.