O fim do otimismo

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Tive imensa sorte em nascer no ano em que nasci: 1964. Quando já tinha alguma consciência de mim mesmo e do mundo que me rodeava vivia em democracia. O ter uma opinião e expressá-la

moldou-me de forma positiva e marcante. Podemos não ter apanhado a fútil liberdade do consumismo – as calças de ganga eram produtos de luxo e, até, os iogurtes o eram – mas apanhamos a liberdade do pensamento. Podíamos não ter o indolente conforto do Spotify, mas tínhamos seguramente a avassaladora experiência de saltitar de casa em casa para ouvir o álbum dos Young Marble Giants, ou a edição inglesa do Remain in Light que a irmã de um amigo trouxe, a seu pedido, de Inglaterra, quando as viagens de avião custavam balúrdios.

Entrar em Coimbra, já em plenos anos 80, foi outra sorte. Apesar das viagens de camioneta – como as de carro – serem uma epopeia muito semelhante a dobrar o Cabo das Tormentas, em nau, com pessoas a fumar abundantemente lá dentro, pertenço a uma geração que, mesmo com a intervenção do FMI, tinha uma perspetiva muito positiva sobre a vida e sobre o seu próprio país, muito aditivada pelo humor do Miguel Esteves Cardoso sobre a nossa querida pátria. O humor relativizava a gravidade das coisas, transportada como uma cruz pelas gerações que nos precederam, pois, a única coisa que realmente interessava era viver e aprender vivendo. A entrada na CEE deu-nos o cosmopolitismo que faltava. A ideia de periferia era uma coisa que nos incomodava e, a partir de 1986, deixou de incomodar.
Julgo, assim, pertencer a uma geração tolerante e otimista. Apesar de ter estado dentro de uma bolha privilegiada, como estudante universitário, livre das angústias profissionais que hoje se colocam, penso que as marcas distintivas da minha geração são, precisamente, a tolerância e o otimismo.
Nada era incompatível, tudo era complementar. As pessoas só eram evitáveis se não prestassem mesmo e nunca o eram por serem diferentes de mim. Sempre vivi, sem incómodo, imerso em meios de esquerda, sem que isso me atrapalhasse ou os atrapalhasse. Pensávamos de maneira diferente. E depois? Qual o drama nisso? Nenhum: as diferenças de pensamento eram muito mais estimulantes que as semelhanças. Aprendi sempre muito com quem de mim discordava. A única linha vermelha que tracei foi a estupidez. Essa é incombatível.

Toda esta vivência alimentou o meu otimismo próprio. No entanto, hoje, até em mim, esse otimismo resiste muito mal perante a realidade. Temos sempre demasiado presente e ignora-se deliberadamente a consequência.

A progressiva divisão das sociedades, alimentada pelo etnicismo religioso e pelo populismo político, está a corroê-las de forma irreversível e a levar a pontos de não retorno. Quem de nós, fiéis democratas, alguma vez julgaria possível proibirem-se manifestações pró-palestinianas em território europeu? Muito poucos certamente. Apesar do cruel jihadismo a que assistimos no coração da Europa, que custou há poucos dias a vida a um professor francês e a dois cidadãos suecos, sempre tivemos a abertura própria de sociedades maduras e tolerantes. Matar em nome de Alá, até em plena Europa, passou a ser não apenas um argumento para os extremos políticos, mas um real e pesado receio que molda até mesmo os mais tolerantes. O incómodo pelas diferenças culturais parece-me hoje transversal, apesar de silenciado pelo decoro remanescente. É só olhar. Tenho sentido isso mesmo nas cidades europeias que visito. As diferentes culturas deixaram de se cruzar, para passarem a ser antagónicas.
O sofrimento dos israelitas é difícil de imaginar e a solidariedade das sociedades ocidentais é compreensível. O sofrimento dos palestinianos é igualmente grave e digno da nossa empatia e solidariedade. Sentimento que os palestinianos, uma vez mais, não encontram nos seus “países amigos”, no acolhimento que sistematicamente lhes negam, mesmo quando eles mais precisam, ao contrário do entusiasmo com que lhes financiam o terrorismo.
Otimismo não é, por agora, definitivamente, um estado de espírito que me assente. E a tolerância começa igualmente a fugir-me entre os dedos, cada vez que leio que, afinal, toda esta barbárie, tem um culpado: nós, os ocidentais. Eu sei que o ódio à sociedade ocidental, mesmo quando propalado por cidadãos que nela vivem, é incombatível, é injusta, é desonesta. Eu sei igualmente, e é isso que me desanima, que a troca de argumentos passou – não sei bem quando – a ser já uma atividade intelectual profundamente exótica.

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