Das decisões políticas

images/opiniao/oscar-pires.jpg

Que todas têm as suas consequências. E porventura com efeitos que se prolongam por décadas.


Assim as sobre habitação. E sendo que os tempos eram outros, que o estádio de satisfação de direitos fundamentais em muitos países europeus não atingia os níveis que hoje lhes encontramos, mormente nos mais atrasados no seu desenvolvimento produtivo, social e cultural, a verdade é que a evolução do sistema capitalista no após 2.ª Grande Guerra e mormente a partir da década de cinquenta, alterou profundamente a situação anterior e, numa velocidade que tem sido crescente, trouce-nos a esta sociedade desenfreadamente consumista, dilapidadora dos recursos naturais não renováveis e promotora de alterações climáticas.

Convém entretanto recordar que, no que a nós, portugueses, nos toca e durante dezenas de anos, as rendas urbanas estiveram congeladas e, mesmo quando se lhes deu circunscrita abertura, elas e nos locais em que esta era admitida, não correspondiam às praticadas no mercado. E o resultado dessa política, a longo prazo, foi o pouco interesse do investimento privado nessa área, pelo marasmo duma rendabilidade baixíssima, senão mesmo nula ou negativa. Ora, sendo esse investimento relativamente seguro, essa menor apetência para essa opção de aplicação de capitais teve ainda outro efeito pernicioso, o do descuido e abandono da conservação necessária, e raramente, o de actualização das condições de habitabilidade; o que, com o tempo, levou à degradação do parque habitacional.
Por outro lado o investimento público no sector, grande parte através de entidades vocacionadas para a acção social, sem nunca ter atingir a dimensão imprescindível, teve localizações muito pontuais e sempre muito longe de suprir as carências dos estratos populacionais mais desfavorecidos; dirigindo-se, mesmo e por vezes, a sectores muito específicos.

Em suma, ausências de programa nacional ou locais para a habitação.
Com isso convivemos até há umas boas dezenas de anos.
Depois, depois foi a explosão da construção civil. A que se seguiu a da política de fomento de, e direccionamento para a aquisição de casa própria através de financiamento. Isto numa realidade, a nossa, dum baixo fruto do trabalho, quer no que concerne à parte remuneratória, quer no da própria da produtividade; esta directamente relacionada com o espectro tercearizado da maior parte da nossa indústria.
Adiantado isto, convém aqui recordar, para quem tenha essas memórias, do que pelos anos setenta se passou com as vendas a prestações. Foi, na altura e focando as mais significativas, uma corrida aos electrodomésticos, a seguir aos veículos automóveis e depois, finalmente, às habitações. Foram, por cá, os primórdios da expansão consumista. Isto porque, como se sabe, uma forma de fomentar a procura dos que não teriam acesso aos respectivos bens, era facilitar-lhes, diluindo-o no tempo, o pagamento. E com o evoluir da conjuntura, com a progresso do sistema bancário, com a sua crescente capacidade monetária e as novas formas de crédito acessível, agilizado e universalizado, acabaram por impor no imobiliário o endividamento. E aquilo que tinha começado por ser apenas uma manobra para amplificar a procura, sobretudo nessa área, com o andar dos anos virou, também e numa grandeza nunca atingida, um negócio altamente lucrativo (não esquecer o nível de segurança desses investimentos; vade-retro subprime crisis). E o quase ressuscitar duma figura medieval de sinistra memória: a dos servos da gleba. Como se deve saber, nesses recuados tempos que duraram por muitos séculos (cifra, as Almas Mortas, de Gogol) e com conteúdos jurídicos que se foram amoldando às circunstâncias, ao decorrer da vida e numa evolução do que tinha sido a anterior escravatura, havia pessoas que estavam adstritas a uma parcela de solo (gleba). Isto é, estavam ligadas e sujeitas a um bocado de terra. Tal como hoje os novos servos da casa. Estes, por imbuídos da aspiração, e direito fundamental, à habitação, como necessidade primária duma fixação física e identitária com um espaço próprio. Talvez até, a essa aspiração, se lhe possa atribuir um certo cunho instintivo (não se pode esquecer que há animais que chegam a demarcar a exclusividade do seu território). O que, entretanto, custa a admitir é que a satisfação dessa, assim, propensão natural, seja um óptimo negócio e muitas vezes fonte de lucros especulativos. E não nos venham com a justificação de que é o mercado a funcionar. Pois e certamente, se é a objectividade das suas leis a determinar a situação presente, a elas e sobre elas sobrepõem-se valores humanos que os decisores estão obrigados a, e deviam intransigentemente, respeitar e promover na prossecução do bem comum. Isto na medida em que aquelas, as suas decisões, antecedem e muito, ou assim deviam ocorrer, a dita acção do mercado e a tal obrigaria a boa, e correcta, política do interesse público.

Será que ela, essa obrigação, por cá, foi seguida nesse intuito? E este por cá, no que vai prosseguir, restringe-se aos municípios, embora com díspares actuações, por o que se escolhe o nosso como protótipo.
Antes, porém e há uns anos, foi noticiado num semanário local que neste concelho e para cada agregado familiar existiriam 1,42 fogos. No mesmo sentido e como se pode ver da net, um estudo que se diz ter sido elaborado pela OCDE em 2019, entre os 50 países sobre que incide, Portugal ocupa o primeiro lugar com 577/1.000 fogos/habitante (Espanha, 552; Reino Unido 433; Estados Unidos, 421); para um total de 5.859.000, sendo que, destes, cerca de 750.000 estariam devolutos. Atente-se o apenas e sem comentários.
Retornando ao fio do texto e em relação ao uma qualquer política municipal para a habitação, seria suposto admitir-se que ela integraria, ou estaria, contemplada nos PDMs de cada um deles. Mas ...
Sim! Há sempre um mas. E neste caso ele coincide com um antes. Antes esse que começa por se posicionar na gestão dos solos urbanos. Como a seu tempo o evidenciou o LNEC e foi consagrado em legislação; entretanto ignorada e abandonada. E com isso se liquidou a hipótese de uma intervenção política racional assertiva, só viável na efectiva disponibilidade das áreas urbanas. Assim, para fugir às sempre morosas, burocráticas e judiciais expropriações, dada a geral pouca dimensão de terrenos municipais, as formas de comparticipação ou associação na criação de bolsas de solos definidos como os urbanizáveis ou construíveis, teriam sido uma solução e base do correcto ordenamento e, também, para um sequente intencionado, coerente e racional programa de habitação. Isso teria permitido quanto a este último aspecto, face às necessidades presentes ou projecções futuras e à vontade política, definir a cada momento, convenientemente, as reais metas a atingir e, até, as tipologias e os potenciais destinatários.
Simplesmente não foi esse o caminho seguido e que, no entanto, era o aconselhável nos primórdios da década de oitenta. Em contrário, optou-se por enjeitar essa linha de acção e assobiar-se para o ar, num deixar correr ao sabor das brisas, ou seja e sobretudo, da especulação e das iniciativas dos que a ousavam, num desordenamento comedor de solos não urbanos sem paralelo histórico.
Consequências?
Só um cego as não consegue ver, pois, desde a irracional destruição da cobertura vegetal por ocupações incongruentes, à adulteração da paisagem, ao desprezo pelo ambiente, à insensibilidade pela sustentabilidade ecológica, à frustração da mobilidade, às pródigas (no ratio com a população), e porventura deficientes, infraestruturas viárias (e não só) e sempre no descuido da exigível qualidade de vida, criou-se um chorrilho de anormalidades de que o devir se terá de encarregar.

Fundevila, 18 de Outubro de 2023


Imprimir Email