Das decisões políticas
Que todas têm as suas consequências. E porventura com efeitos que se prolongam por décadas.
Assim as sobre habitação. E sendo que os tempos eram outros, que o estádio de satisfação de direitos fundamentais em muitos países europeus não atingia os níveis que hoje lhes encontramos, mormente nos mais atrasados no seu desenvolvimento produtivo, social e cultural, a verdade é que a evolução do sistema capitalista no após 2.ª Grande Guerra e mormente a partir da década de cinquenta, alterou profundamente a situação anterior e, numa velocidade que tem sido crescente, trouce-nos a esta sociedade desenfreadamente consumista, dilapidadora dos recursos naturais não renováveis e promotora de alterações climáticas.
Por outro lado o investimento público no sector, grande parte através de entidades vocacionadas para a acção social, sem nunca ter atingir a dimensão imprescindível, teve localizações muito pontuais e sempre muito longe de suprir as carências dos estratos populacionais mais desfavorecidos; dirigindo-se, mesmo e por vezes, a sectores muito específicos.
Em suma, ausências de programa nacional ou locais para a habitação.
Com isso convivemos até há umas boas dezenas de anos.
Depois, depois foi a explosão da construção civil. A que se seguiu a da política de fomento de, e direccionamento para a aquisição de casa própria através de financiamento. Isto numa realidade, a nossa, dum baixo fruto do trabalho, quer no que concerne à parte remuneratória, quer no da própria da produtividade; esta directamente relacionada com o espectro tercearizado da maior parte da nossa indústria.
Adiantado isto, convém aqui recordar, para quem tenha essas memórias, do que pelos anos setenta se passou com as vendas a prestações. Foi, na altura e focando as mais significativas, uma corrida aos electrodomésticos, a seguir aos veículos automóveis e depois, finalmente, às habitações. Foram, por cá, os primórdios da expansão consumista. Isto porque, como se sabe, uma forma de fomentar a procura dos que não teriam acesso aos respectivos bens, era facilitar-lhes, diluindo-o no tempo, o pagamento. E com o evoluir da conjuntura, com a progresso do sistema bancário, com a sua crescente capacidade monetária e as novas formas de crédito acessível, agilizado e universalizado, acabaram por impor no imobiliário o endividamento. E aquilo que tinha começado por ser apenas uma manobra para amplificar a procura, sobretudo nessa área, com o andar dos anos virou, também e numa grandeza nunca atingida, um negócio altamente lucrativo (não esquecer o nível de segurança desses investimentos; vade-retro subprime crisis). E o quase ressuscitar duma figura medieval de sinistra memória: a dos servos da gleba. Como se deve saber, nesses recuados tempos que duraram por muitos séculos (cifra, as Almas Mortas, de Gogol) e com conteúdos jurídicos que se foram amoldando às circunstâncias, ao decorrer da vida e numa evolução do que tinha sido a anterior escravatura, havia pessoas que estavam adstritas a uma parcela de solo (gleba). Isto é, estavam ligadas e sujeitas a um bocado de terra. Tal como hoje os novos servos da casa. Estes, por imbuídos da aspiração, e direito fundamental, à habitação, como necessidade primária duma fixação física e identitária com um espaço próprio. Talvez até, a essa aspiração, se lhe possa atribuir um certo cunho instintivo (não se pode esquecer que há animais que chegam a demarcar a exclusividade do seu território). O que, entretanto, custa a admitir é que a satisfação dessa, assim, propensão natural, seja um óptimo negócio e muitas vezes fonte de lucros especulativos. E não nos venham com a justificação de que é o mercado a funcionar. Pois e certamente, se é a objectividade das suas leis a determinar a situação presente, a elas e sobre elas sobrepõem-se valores humanos que os decisores estão obrigados a, e deviam intransigentemente, respeitar e promover na prossecução do bem comum. Isto na medida em que aquelas, as suas decisões, antecedem e muito, ou assim deviam ocorrer, a dita acção do mercado e a tal obrigaria a boa, e correcta, política do interesse público.
Será que ela, essa obrigação, por cá, foi seguida nesse intuito? E este por cá, no que vai prosseguir, restringe-se aos municípios, embora com díspares actuações, por o que se escolhe o nosso como protótipo.
Antes, porém e há uns anos, foi noticiado num semanário local que neste concelho e para cada agregado familiar existiriam 1,42 fogos. No mesmo sentido e como se pode ver da net, um estudo que se diz ter sido elaborado pela OCDE em 2019, entre os 50 países sobre que incide, Portugal ocupa o primeiro lugar com 577/1.000 fogos/habitante (Espanha, 552; Reino Unido 433; Estados Unidos, 421); para um total de 5.859.000, sendo que, destes, cerca de 750.000 estariam devolutos. Atente-se o apenas e sem comentários.
Retornando ao fio do texto e em relação ao uma qualquer política municipal para a habitação, seria suposto admitir-se que ela integraria, ou estaria, contemplada nos PDMs de cada um deles. Mas ...
Sim! Há sempre um mas. E neste caso ele coincide com um antes. Antes esse que começa por se posicionar na gestão dos solos urbanos. Como a seu tempo o evidenciou o LNEC e foi consagrado em legislação; entretanto ignorada e abandonada. E com isso se liquidou a hipótese de uma intervenção política racional assertiva, só viável na efectiva disponibilidade das áreas urbanas. Assim, para fugir às sempre morosas, burocráticas e judiciais expropriações, dada a geral pouca dimensão de terrenos municipais, as formas de comparticipação ou associação na criação de bolsas de solos definidos como os urbanizáveis ou construíveis, teriam sido uma solução e base do correcto ordenamento e, também, para um sequente intencionado, coerente e racional programa de habitação. Isso teria permitido quanto a este último aspecto, face às necessidades presentes ou projecções futuras e à vontade política, definir a cada momento, convenientemente, as reais metas a atingir e, até, as tipologias e os potenciais destinatários.
Simplesmente não foi esse o caminho seguido e que, no entanto, era o aconselhável nos primórdios da década de oitenta. Em contrário, optou-se por enjeitar essa linha de acção e assobiar-se para o ar, num deixar correr ao sabor das brisas, ou seja e sobretudo, da especulação e das iniciativas dos que a ousavam, num desordenamento comedor de solos não urbanos sem paralelo histórico.
Consequências?
Só um cego as não consegue ver, pois, desde a irracional destruição da cobertura vegetal por ocupações incongruentes, à adulteração da paisagem, ao desprezo pelo ambiente, à insensibilidade pela sustentabilidade ecológica, à frustração da mobilidade, às pródigas (no ratio com a população), e porventura deficientes, infraestruturas viárias (e não só) e sempre no descuido da exigível qualidade de vida, criou-se um chorrilho de anormalidades de que o devir se terá de encarregar.
Fundevila, 18 de Outubro de 2023