“Parábola dos sete vimes”

images/opiniao/oscar-pires.jpg

Parábola cuja inversão política consiste na vetusta e por demais consabida, e aplicada, máxima divide et impera. A qual se estende, neste presente que vai decorrendo, aos mais dispares

sectores da sociedade ocidental e suas afins.
Causas?

São múltiplas, mas não resultam imediatamente do desejável desenrolar da evolução daquela, mas sim de intencionada manipulação dos que, nela, realmente detêm as rédeas da condução dos destinos dos povos que a compõem. Num linguajar mais escorreito e para a superestrutura que ocorre nessa sociedade, a indigitação refere-se a pequenos grupos internacionais e nacionais que, sobre ela, determinam as políticas que mais servem os seus, deles, interesses; e, isso, directamente por si, ou pelos seus homens de mão e a quase totalidade dos políticos em exercício de cargos públicos.
Como se chega a esta conclusão?
Começando por atentar que onde se vê a árvore não vê a floresta, há-de convir-se que o verdadeiramente importante no contexto que se quer abordado não é o modelo político maioritariamente nela ocorrente, mas apenas e tão só o seu antecedente: o modelo de sociedade. Modelo de sociedade que, assim, tem de ser colocado antes do político e que, este, apenas existe, na sua secundarização e subordinação, para concretizar aquele e por forma que essa implementação seja a mais profícua para o bem comum. E assim é que deve, e teria de, ser. Mas não é!

Afirmado este básico postulado, mais uma vez se trás à colação a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 (cuja leitura e estudo, insiste-se, devia constar obrigatoriamente dos programas escolares do 3.º ciclo do ensino básico), porque nela e no seu querer apontar, e possibilitar, um mundo de efectivos direitos para todos (por eles serem os alicerces da liberdade, da justiça social e da paz), estão estabelecidas as premissas para um modelo de sociedade igualitária que, assentemos, está muito longe de ser o em que nos encontramos. Isto, malgrado a maior parte das constituições das nações ocidentais terem transposto para o seu texto princípios que aquela consigna. Nesse particular a nossa da 1976 (na sua Parte I, Direitos e Deveres Fundamentais, artigos 12.º a 79.º e ainda, de certa maneira, na Parte II, artigos 80.º a 107.º). Mas uma coisa são as declarações a que todos se obrigaram, ou preceitos legais vigentes e outra bem diferente, a realidade vivida. Estarem lá, estão, mas depois, como o falante castelhano ironiza com enfâse: siempre hay un pero. E esses peros são constantes e crescem como cogumelos. Exemplificando e porque é um problema do quotidiano, transcreve-se o seu artigo 65.º 1, que determina que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.” Ficamos entendidos? E o que o seguinte artigo 66.º diz sobre o ambiente e qualidade de vida goza de idêntico pervertido fado; e localmente merecia uma séria reflexão à nossa Câmara Municipal, não só pelo dever de defesa que se impõe a qualquer, mas também por aquilo que lhe incumbe.

Mas adiante, que a introdução já vai extensa e o modelo de sociedade desenhado nos documentos citados é demasiado progressista para aquele a que efectivamente nos sujeitamos. É que uma coisa são normas dispositivas (ainda que coercivas) e, outra bem distinta, a prática dos que juraram cumprí-las. Compreenda-se, portanto, que o que está na base de todas as indefinições presentes e da generalizada insatisfação, é a tentativa de postergar um modelo de sociedade que se deveria querer e defender para “todos, todos, todos, todos”, todos os humanos (Fratelli Tutti) e, para assim, se avançar na via da vera persecução do almejado grito dos revolucionários franceses: igualité, liberté et solidiarité (com inversão e actualização).
Ora o a que se assiste, o que avassala o nosso dia a dia, são os faits divers do modelo político; os ajustes que se lhe intentam propor para melhor servir interesses instalados, as denúncias de seus defeitos ou más práticas personalizáveis dos seus agentes e um sem número de outras minudências. E por outro lado um incremento de reivindicações singularizadas e divisionistas, que cortam o élan que deveria ser concentrado no vórtice do primordial modelo de sociedade e da sua sustentada, e sustentável, consecução. Tudo num oceano de motivações puramente distrativas, que originam inquinadas soluções pontuais que não resolvem problemas de fundo, ou em que se alardeiam futuras realizações sempre adiadas e superficiais, numa miscelânea que, qual nevoeiro espesso, tapa e oblitera o verdadeiro problema, o nó górdio com que nos deparamos: o dum modelo de sociedade com que o Zé Povinho (desculpa lá Rafael Bordalo por gostosamente se te ressuscitar!) sonha.
Nisso estamos!


É! E para se reencarreirar para a resposta à pergunta do quarto parágrafo acima, verifica-se assim que, de feição insidiosa, se tem vindo a despoletar progressivamente, na praça pública, singularidades da vida. Voltando à imagem atrás aduzida, foca-se cada “árvore da floresta”, atem-se às suas espécies, subespécies e admissíveis especificidades, num revoar de queixas e direitos violados que parece não terem fim. Num tudo ser susceptível de denúncia, apreciação e exigência. E não se compreende sequer que soluções destacadas e descontextualizadas do concreto modelo de sociedade existente são inviáveis, sempre inconsequentes e, eventualmente, em vez de mitigarem o que se quereria obter, agravam-no. Na evidência suspeitosa de que essas actuações de fracionamento não são de geração espontânea e, antes, provêm de uma intencionalidade organizada e persistente, tendente a obstaculizar as mutações que se vão gerando na sociedade. É que nas derivas que a construção do modelo de sociedade estatuído, e se crê ainda aceite maioritariamente, terão de percorrer para se o atingir, há situações objectivas que o modelo político não pode, por si, ultrapassar e que se lhe impõem, mas que convém não abordar, e não dialogar, para se atrasar a sua superação e conseguir manter o status quo. Tal nos ensina o processo histórico, onde cada ideal revolucionário que atingiu o poder, depois perdeu os apoios sociais que o alcandoraram, tornou-se estático, a seguir autoritário e acabou por retroceder a um estádio de desenvolvimento próximo do tempo em que eclodiu e como se quase não tivesse ocorrido. É que os processos materiais e, neles, os sociais, têm a sua própria dinâmica e as bruscas transformações (rupturas) do modelo de sociedade não se inserem na sua lógica, por o que, passado o impulso que as determinou, elas regressam às circunstâncias da sua evolução sequencialmente consequente. Tanto mais que, efectivamente, a superestrutura é vigorosamente reaccionária e defensiva em relação às mudanças que vão ocorrendo nas suas bases e que a levariam a ter de adaptar-se. Entre aquela e estas, há, portanto, divergências temporais que as dessincronizam. E parece ser essa a fase que atravessamos.

Daí, dessa reacção, todas essas intencionadas, por fomentadas e fonte de fortíssima exploração mediática, quezílias e confrontos exacerbados que nos afogam diariamente. Particularidades de particularidades que, ainda que de incidência mais ou menos justa, não encontram solução no modelo político vigente, porque ele não lhes consegue, nem pode, responder, posto que a sua resolução depende de o todo que é o duma sociedade que não fruímos, ainda que contemplado em contratos sociais de declarações internacionais e constituições.
É tempo, portanto, de nos fixarmos no que realmente se ambiciona, de o definirmos e trabalharmos para ele.
Zé Povinho acorda, apreende e une-te.

Fundevila, 17 de Setembro de 2023


Imprimir Email