Bom-senso

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Nem oito nem oitenta”, que o de que estamos mesmo carecidos é do acima título.

Coisa que esta sociedade parece ter remetido ad kalendas graecas; ou e pelo menos, é o que transparece dos ecos que nos vão chegando através das mais variadas notícias. Porque é isso o que a empíria delas nos ensina, não só pelas nacionais como nas do que vai de mundo, numa amplitude que atravessa toda a estratificação social e que abrange do mais vulgar dia a dia ao cume da política. Isto, tanto na paz como nas guerras que estão por aí.
Com esta conclusão, importa perceber que o bom-senso, tanto na concepção como na actuação (sobretudo nesta e, quando não suceda, pela verificação nociva dos efeitos dessa omissão) é uma propriedade qualitativa advinda de o equilíbrio entre extremos superlativos e seus antónimos; entre excelentes e péssimas opções. Ou como costuma dizer-se num falar lhano: “no meio é que está a virtude”. Ou, ainda e também, numa acepção de dinâmica social, um posicionamento entre mudanças bruscas desestabilizadoras e estabilidades estagnantes. Sendo que nesta dinâmica e para um entendimento conceitual actual, ele não corresponde ao meio aritmético ou geométrico, mas ao de uma inserção correcta no natural prosseguimento do processo social e capaz de lhe proporcionar os efeitos correspondentes a uma sua progressiva evolução sequencialmente consequente (quando assim não acontece, o próprio processo e na sua posterior marcha, regressa à sequência). Sem dialécticas, portanto, que a dialéctica não ocorre no processo material massivo, isto é, no concreto do Universo em que estamos.

Posta nestes termos a oração, como se cria o bom-senso social?
Boa questão que, fantasiando (?), nos remete para uma procissão vinda do mais remoto passado, porque a compreensão do que ele seja, ou possa ser na sua evolução, tem muito a ver com a caminhada humana ao longo de todo o seu percurso. É um acumular de incessantes conhecimentos e suas aplicações. Assim, sem descer a tempos mais ignotos e desde actos volitivos simples, que (tomemos entre muitos o exemplo da recolectagem primitiva, em que o escolher o que comer ou não comer, ou, da caça, em que definir a presa e os meios mais profícuos para o seu êxito) impunham-se decisões que se foram afinando por força da já citada empíria. E como estamos divagando sobre situações gregárias, de grupos, já dentro deles e essas ou outras decisões (como as de quem come e quanto), coagiam ao acerto delas por uma imediata questão de sobrevivência. Decisões que, por conseguinte e então, corresponderiam a encontrar o bom-senso, ou seja, a que melhor defendesse, em cada situação, o interesse objectivo do agregado. Depois, com o andar da carruagem e passando a uma progressiva maior complexidade social, de conjuntos de umas, poucas, dezenas de pessoas à escala dos muitos milhões, é evidente que esse objectivo interesse comum complicou-se astronomicamente por variadíssimas causas, entre as quais que se destacam: a)- a estrutura organizativa das sociedades e a miríade de decisões que, permanentemente, nelas têm que ser tomadas; b)- a multiplicidade dos aspectos da vida sobre que versam; e c)- dentro de cada uma delas, sociedades ou as com elas relacionadas, os conflitos de interesses.
Aqui chegados e continuando a fantasiar (?), não já regressando à pré-história, mas ficando-nos por muito mais perto, há milhares de anos e já na sedentarização, vamos deparar com uma peça fundamental para a criação da habituação à formação do bom-senso: a célula gregária primária. Estruturada esta hierarquicamente para prossecução da sua reprodução (reprodução que, na esfera cósmica, corresponde à dinâmica de todo e qualquer processo material massivo e sua primeira, e intrínseca, manifestação) e manutenção, pela vivência e convivência hierarquizada no seu interior, os seus membros sujeitavam-se às decisões de quem tinha poder para aí as ordenar. Nessa base de proximidade e envolvimento directo em que o bom-senso da decisão era facilmente comprovável, importa focar o aspecto da hierarquia porque, naturalmente e para atingir os fins já enunciados, ela educava para o posterior salto para uma comunidade mais alargada e para a participação nas que se lhe poderiam seguir. Depois, prosseguindo com o sucessivo desenrolar, em progressão, dos processos sociais e o sequente afastamento dos decisores aos a elas sujeitos, o que se tem verificado ao longo dos tempos é que as estruturas organizativas geradas se adensam e especializam, diluindo e fragmentando as decisões. Ao mesmo tempo que essas decisões se multiplicam, multiplicam ... E as áreas sobre que incidem abrangem praticamente todas os aspectos da vida, obrigando, com isso, a que os decisores, e respectivos assessores e técnicos preparadores, tenham competências acrescidas, e sensatez, par a poderem acertar na obtenção do bem comum. Para todos eles actuarem com o desejável bom-senso.

Posto isto que já em si apresenta consabidas dificuldades para a justeza das decisões, a outra causa invocada e que justifica parágrafo à parte, é a do conflito de interesses. Porquê? Porque ela distorce e aniquila o exigível bom-senso. Como? Por um posicionamento díspar em relação aos factores de produção. É que uma parte muitíssimo substancial das sociedades ocidentais vive do que de si presta, enquanto outra assaz minoritária vive de auferir proveitos. Com uma fronteira entre essa dicotomia de variadas e múltiplas gradações que podem originar deslocalizações num sentido ou em outro, ou apenas aproximações a um dos lados. Circunstância esta, e não só também, que contribui poderosamente para pôr em cheque o bom-senso decisório. Dando para ver, concomitantemente, em que mãos está o poder e em benefício de quem ele é exercitado (cifra, p. ex.: Noam Chomsky). E para completar o quadro acrescem ainda a disparidade de competências, iliteracia generalizada e sobretudo a manipulação, que, todas, contribuem para dar a aparência de bom-senso ao que não o é.
Muito mais haveria que dizer, mas o espaço não dá para isso e a carência do necessário bom-senso fica genericamente assinalada.
Particularizando-o ainda, a natureza dos crimes de violação em discussão parlamentar por estes dias.
Os crimes, em termos de sua tramitação, são públicos, semi-públicos ou particulares. Sintetizando e sem maiores detalhes, dir-se-á que nos primeiros a denúncia é obrigatória para qualquer entidade pública e pode ser efectuada por qualquer pessoa; nos segundos a denúncia cabe ao ofendido; e nos terceiros, o ofendido, além da denúncia, dispõe do processo. Ou seja, o interesse público, ou não, prevalece sobre o direito pessoal. Ora, sobre esta qualificação e na dita criminalização da violação, os defensores de total liberdade sexual em relacionamentos oficializados ou não, ou fora deles, entendem que o crime deve ser público. É a moda! Sabe-se, porém, que ao presente ele é semi-público. E entendem outros que assim deve continuar, aumentando apenas o prazo para a denúncia. O que é que nos diz, parece, o bom-senso? Primeiro, que o crime não se reduz apenas ao género feminino. Depois que, além de ser sempre execrável, repugnante e injustificável, ele fere, e porventura mutila, quem o sofre. E por isso se crê que é essa pessoa que deve saber se lhe quer dar publicidade, ou não. Isto porque, em grande parte da nossa sociedade que não aquela elite atrás chamada à colação (tanto mais que tipo de crime tende alargar-se ao “sí es sí”, estendível a posterior retratação durante a consumação), mesmo estando integralmente ao lado da vítima e refutando qualquer opróbrio sobre ela, a sua publicitação ainda pode resultar, para ela e seus próximos, numa humilhação não descartável e porventura não facilmente diluível. Daí o dever ser ela, no seu direito de privacidade tão defendido para outras situações não tão pessoais e íntimas, quem deve ajuizar da oportunidade da denúncia. E nesse sentido devia, ainda e no mesmo prazo, permitir-se-lhe a desistência com razões justificadas.
Haja tino!

Fundevila,
17 de Maio de 2023


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