Tema livre
O momento da redação era um momento especial. A professora, depois da chamada lenta, ordenada e repetitiva dos nomes, comunicava à turma que naquele dia,
era dia de redação. Sem a esquizofrenia metodológica dos dias de hoje. Apetecia-lhe, apenas isso.
Saíamos assim, nesse dia, do torpor habitual das aulas. O som do rasgar das folhas dos cadernos, onde assentaríamos pela escrita a nossa imaginação, ou a falta dela, alastrava pela sala numa a cacofonia de papel. Aquela horinha seria dedicada à fantasia que sobrevivia em cada um de nós. A professora desfolharia tranquilamente o jornal, enquanto a turma se afadigava a pensar coisas e a escrever coisas. Era um saudável exercício de silêncio, mesmo nas turmas mais barulhentas. Uns porque as ideias se atropelavam e era preciso domesticá-las, travando o ímpeto das palavras de uma forma meditativa, outros porque as ideias tinham graves dificuldades para boiarem no pensamento e era preciso esperar, com um intrigante ar bovino, que elas chegassem à tona.
Hoje diz-se composições: a redação tinha uma sonoridade demasiado operária e foi necessário arranjar uma palavra mais pomposa, que afirme a genialidade (aparente) das novas gerações. Os jovens vão compor, nós, os mais antigos, redigíamos. Aliás, a redação/composição é já uma espécie de cadáver adiado, pois o exercício de escrever textos vai-se assemelhando a uma inútil excentricidade. A redação/composição cinge-se a normas pré-definidas, apertando definitivamente o cerco à imaginação. O cúmulo dessa disposição para a fantasia era, sem dúvida, o tema livre. Quando a professora dizia que o tema era, efetivamente, livre, perpassava pela sala um zum-zum aflito daqueles que não gostavam nada dessa liberdade criativa. No entanto, creio, nada aproximava mais professor e aluno que o tema livre. O aluno abria-se de forma inapelável ao professor e o professor, por entre notas, correções, sublinhados de um vermelho violento e zangado, conhecia um pouco melhor o que bailava na cabecinha dos adolescentes com os quais convivia.
Num desses dias de tema livre, provavelmente no 9ºano, enquanto eu me afadigava a escolher palavras que colorissem o meu tema livre, um companheiro de sempre, sentado à minha frente, balançava-se nervosamente na cadeira à procura que o movimento desentorpecesse a sua imaginação. No silêncio da sala pediu-me discretamente um tema livre. Um disparate. Se ele me pedisse a definição de esporos, ou a raiz quadrada de 144, dar-lhos-ia com recatada satisfação, agora um tema livre não se dá a ninguém, tem de sair de dentro. Ele é que não achou piada nenhuma à minha renitência e pediu-me novamente um tema livre, mas, agora, com uma autoridade desagradável que me fez rir, quase gargalhar, perante a aflição alheia. Da terceira vez que mo pediu, já haviam passado quase 20 minutos e a folha dele permanecia imaculada, fê-lo num movimento brusco e violento, já quase a prometer-me pancada, de tal forma que deu um jeito no pescoço e teve de sair da sala aos gritos perante a dor muscular e o olhar atónito, apesar de preocupado, da nossa professora. Foi, mesmo assim, apesar do sofrimento, um final feliz. Ele safou-se daquela redação, eu pude terminar o meu tema livre e a professora condoeu-se dele, já que desconhecia os pormenores da peripécia.
Faz hoje falta o tema livre. Enquanto a redação se afunda nas metodologias modernas, e a nossa realidade mediática anda sempre à volta do mesmo, enquanto as redes sociais tipificam a discussão e a “beleza” do rabo grande e do beicinho, aparelhamo-nos todos, na chamada “era da informação”, a um menu temático absolutamente previsível e enjoativo. A imaginação perde-se na argumentação servida à la carte, papagueada vezes sem conta, até ao pensamento se tornar inócuo e sem sentido. Os estímulos já não vêm de dentro, mas das notificações assobiadas nervosamente pelos telemóveis. Transformamo-nos todos, progressivamente, numa espécie de cão de Pavlov, reagindo a estímulos exteriores à nossa imaginação. Deixamos de ser o cientista para passarmos a ser o cão. Deixamos de ter ironia para passarmos a indignados crónicos. Os temas de discussão acabam por ser tristes variações sobre a mesma coisa e, muito frequentemente, sobre coisas sem importância nenhuma.
Um outro amigo, que o tempo não arrastou para o meu presente, como o fez com o que torceu o pescoço, mas que revejo sempre que posso com enorme satisfação, perante um tema livre decidiu escrever aquilo que ouvira, uns dias antes, num relato radiofónico de um jogo de futebol. Foi no ano anterior ao torcicolo. O nosso professor de português, homem com humor, na data da entrega das redações, leu a redação desse meu amigo para toda a turma e a hora de aula foi dedicada àquela leitura, uma das mais bem-dispostas que passei no Liceu. Uma galhofa pegada, fita um, finta dois, levanta a cabeça e remata ... e goooooolo. A bola vai ao centro do terreno e o árbitro apita, António passa para Joaquim e este devolve-lhe, novamente, o esférico. E aquilo continuava até se encheram as duas páginas prescritas.
Provavelmente, hoje em dia, com a falta de humor e a indignação pavloviana das redes sociais, o professor teria de se haver, no dia seguinte, com um pai furibundo que o acusaria de humilhar o filho e ameaçaria com advogado. Sim, isso aconteceria não porque estamos mais atentos e preocupados, mas porque, aos poucos, vamos perdendo a imaginação e, sobretudo, o humor. É urgente resgatar o tema livre, nas composições do básico ou do secundário, e, fundamentalmente, fazer da nossa vida individual, o mais frequentemente possível, um tema livre.