O que faz falta …
Para quem cumpre rigorosamente os preceitos do catolicismo, o jejum deverá ser mesmo jejum, ou seja, privação de alimento. Claro que não se trata de um jejum
permanente, pois se assim fosse o fiel, ainda que ganhando a salvação, não se livrava de um rápido falecimento; esse jejum deve, segundo o cânone 1251 do Código de Direito Canónico, ocorrer na Quarta-Feira de Cinzas e na Sexta-feira Santa. Nas restantes sextas-feiras do ano, embora na casa dos meus avós paternos se lhe chamasse jejum, o que se cumpria era o que na da minha família materna, em Barcelos, com propriedade se chamava de abstinência, conforme determina o tal cânone que citei.
Jejum ou abstinência, a verdade é que, dispondo o cânone 1250 do referido Código que todas as sextas-feiras do ano, assim como o período quaresmal, são dias e tempo de penitência, em miúdo, quem mais penitenciava nas sextas-feiras era eu, que detestava todo o tipo de peixe, não tanto pelo sabor como pela trabalheira, mesmo o perigo, resultante da proliferação de espinhas no aquático alimento.
Por isso, para mim, a abstinência acabava por ser uma espécie de jejum light, ou soft, como dirão os que se não dão ao trabalho de encontrar as palavras portuguesas que, com propriedade, definem o que aquelas significam.
Ou seja, quando criança, era eu quem ganhava à devota família no que respeita ao cumprimento das referidas canónicas regras.
Mais: porque a relutância em comer o peixe era ultrapassada à força daquilo a que agora se chama violência doméstica, não raro tive de optar entre a mera abstinência, comendo com risco de espinha encravada na garganta (o que chegou a acontecer), e cumprir o penitente jejum, mas acrescido de sacrificiais tabefes e croques.
Mas atenção, que havia exceções. Um colega do liceu, o Berto, que em virtude do meu casamento se me tornou primo por afinidade, calhando de fazer anos numa sexta-feira, tinha previsto um lanchinho com os amigos e colegas mais chegados. Só que, como é de calcular, lanche de aniversário em que não entrassem croquetes, rissóis de carne, panados, fiambre, chouriça e similares, não era lanche se apresentasse.
Alguém se lembrou de que poderia pedir-se dispensa do “jejum” e que, provido de poderes para tal, só clérigo com a patente mínima de arcipreste.
Acorremos então à igreja da Oliveira, onde pontificava como arcipreste Monsenhor Araújo Costa, pessoa simpática e bem-parecida, cabelo negro brilhante, penteado para trás e risca lateral impecavelmente reta, que me fazia lembrar o estilo de tanguero argentino e lhe ficava impecavelmente.
Exposta que lhe foi a razão da abordagem e requerida a pretendida dispensa, perante os implorativos olhares do aniversariante e convidados, Monsenhor, após um momento de contemplação do alto, deferiu o requerido, com a condição de que a carne fosse picada e consumida com moderação. Perante tal, não nos pesou demais a interpretação extensiva da sentença, no sentido de que panados eram uma espécie de carne picada a partir de um só lado e em fatias, e, ainda assim, quem não resistisse ao sentimento de culpa por comer panado, dela se livraria pelo menos na Páscoa seguinte em que os alunos, no nosso caso, do Liceu (então no edifício que é hoje a Câmara Municipal), teríamos de passar pela confissão geral com vista à Comunhão Pascal, pouco menos que obrigatória – ou seja, obrigatória.
Os pecados diluíam-se todos na Igreja da Misericórdia, provida de um pelotão de clérigos, capitaneados pelo Padre Borda, professor da disciplina de Religião e Moral, para quem – e assim nos dizia – ao nascermos, de imediato mergulhávamos num oceano de pecado, no qual nadaríamos até nos afogarmos no fim do tempo de cada um.
O Padre Borda tinha o seu quê de pedófobo (o inverso de pedófilo) pois parecia detestar as crianças sob o seu ministério letivo, infundindo-lhes temor imenso só com a sua presença, de tal modo que no fim das aulas, ao vê-lo sair da porta do Liceu, a criançada, acumulada no largo fronteiro, rapidamente se afastava do seu presumível percurso, deixando-lhe, como se de estrada em densa floresta se tratasse, um aliviado e amplo caminho até à rua de Santa Maria, via de acesso aos seus habituais destinos.
Mesmo assim, se algum distraído lhe ficava à mão e estivesse a comer gelado ou guloseima, não se livrava de experimentar a arte em que o Sr Padre era perito – a chapada. Mesmo que fosse tempo de Quaresma!
Da Confissão Pascal a memória que em mim mais perdura é a de uma espécie de torcicolo que se me ferrou, pelo facto de me ter confessado cada vez mais inclinado de corpo e cabeça para a esquerda, a fim de me furtar ao encosto de cara que, sem dúvida em manifestação de grande carinho, o ocasional confessor se esforçava por manter comigo. Até inventei pecados que não cometera para mais rapidamente pôr termo à incómoda postura, causadora da referida dor muscular.
Adiante!
Preceitos quaresmais, não conheci quem melhor os cumprisse que a “Se” Florinda.
Velhinha velhinha, era de inexcedível religiosidade, pequeníssima de tamanho, muitíssimo magra, cabelo mais branco que a neve e, apesar de tudo isso, dotada de boa mobilidade e grande capacidade de trabalho.
Residente no Lar de S. Francisco, passava na casa dos meus sogros os fins de semana e períodos festivos do ano, com especial incidência no Natal e Páscoa. Fazia-o por razões de amizade e gastronomia.
De baixinha que era, para chegar à pia de lavar a louça tinha de se alçar num banquinho de madeira. Quando precisava de uma qualquer peça do armário da cozinha, e tendo por perto a minha mulher com o seu metro e meio de altura, pedia – A menina, que é alta (!), pode chegar-me aquela caneca?
Imbuída da sua imensa e irrepreensível fé, sobretudo no período correspondente ao da Paixão de Cristo frequentemente desabafava – A terra chama por mim! Ou então, mãos postas e olhar erguido para o infinito das alturas, quando o céu estava bem azul e embelezado com esparsas, mas densas nuvens brancas, clamava – Estou ansiosa para ir para aquela nuvem, sentar-me ao pé do Senhor!
Porventura é de lá que a “Se” Florinda vê como o mundo evoluiu, desde que, há décadas, o deixou, e como são tão outros os temas e diferentes os factos que captam as atenções gerais nesta Quaresma que, como em todas as épocas do ano, bem melhor seria se em paz e plena de fraternal afeto, que tanta falta fazem.
Guimarães, 14 de março de 2023
António Mota-Prego
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