O dilema das hormonas
Foi há já bastante tempo, quando estudava na faculdade, que percebi que aquilo que éramos, interiormente e para os outros, não seria afinal um espelho da nossa
alma própria, mas,simplesmente, uma consequência da nossa química interna. Foi, sem dúvida, uma epifania chata e maçadora. Até aí julgara-me um ser próprio e especial, predeterminado por um espírito impalpável que me habitava e que, no fundo, era eu próprio. Julgava então o corpo como um invólucro apenas, assim como as religiões o acham. Mas não. O meu corpo é mais importante que o meu espírito, pois é o corpo que forja o espírito através de um conjunto de reações químicas. Se eu estou bem ou maldisposto é apenas a consequência visível de um equilíbrio químico ou da sua ausência. A ausência de lítio no organismo será assim mais determinante para a depressão do que uma enorme contrariedade.
Isto não é propriamente excitante, mas, no entanto, permite, por exemplo, encarar a estupidez alheia com a tranquilidade de uma razão médica e não com a brutalidade de uma construção social. Assim, quando se vê alguém a defender acerrimamente teorias da conspiração sobre vacinas ou a forma da Terra, não nos deveremos amofinar. É apenas serotonina a mais, a ser produzida pelas glândulas endócrinas de quem o diz. A culpa é simplesmente de uma molécula, da família das aminas, em que dois átomos de nitrogénio, um oxigénio, dez carbonos e uma dúzia de hidrogénios se ligam de particular forma. Não vale a pena discutir. Tão só recomendar um bom endocrinologista.
Apesar disso nunca fui muito hormonal. A minha necessidade de adrenalina no sangue sempre foi muito modesta, mesmo enquanto era adolescente. A prazer da adrenalina sempre em
Lê-se ainda (não sei por mais quanto tempo ...) que as mulheres são mais propensas a terem flutuações hormonais. Cá está outra realidade que nos consola a nós homens. Não é feitio, é hormonal. Aquela mania delas pensarem várias coisas ao mesmo tempo, de não se conseguirem concentrar-se em pequenos prazeres como ver a bola na TV e beber cerveja ao fazê-lo, tem explicação. As mulheres pensam demais porque o trânsito hormonal sanguíneo é, nelas, caótico. As hormonas masculinas no sangue assemelham-se, na maior parte dos casos, ao trânsito em Guimarães no início dos anos 70.
No entanto esta minha teoria de juventude está a mudar. Perante uma sociedade irritantemente conformada à vidinha, em que o encostar-se à situação vale mais do que construir a situação, a minha teoria química não baterá afinal certo. Vejo os poucos e infortunados jovens, cheios de hormonas, mais atentos ao que passa nos telemóveis do que ao que se passa no mundo real que lhes determina o futuro. Ao contrário, vejo uma data de pessoas com cabelos brancos, pela real e arreliante impossibilidade do seu organismo produzir a melanina que lhes dá cor, na rua, a gritar por respeito, a exigir dignidade, a lutar por um futuro que já não será o seu. Não, isto não pode ser só hormonas, não pode ser só químico, não pode ser só fisiológico.
O sucesso das drogas está relacionado, como nas hormonas endócrinas, com o facto destas ativarem centros de prazer e de escape à realidade. A atual governação é isso: é uma droga que nada resolve. Na verdade, estamos, em Portugal, perante uma espécie de governação hormonal.
Na educação chega a ser irritante. Não há sim, não há não. Há apenas uma tentativa de arrastar e iludir como a morfina ou a heroína o fazem. De deixar andar sem nada decidir, de esperar que o corpo se iluda ou, então, que morra definitivamente.
Sorteiam-se benesses, como um jogo de rifas em que a nossa adrenalina fica em alta. A próxima tômbola será a do apoio ao arrendamento. Nada de estrutural: é só manobrar a conjuntura.
Por outro lado, o governo dá – de repente - ares de cocaína na TAP, na habitação, nos preços dos bens alimentares. Em vez de serem responsabilizados aqueles que técnica e politicamente afundaram a companhia aérea, em vez de olhar para o imenso parque habitacional do estado, o recuperar e valorizar, em vez de se atuar fiscalmente, procuram-se culpados externos, numa loucura cocainómana.
As boas drogas, assim como as hormonas mais determinantes da nossa boa ou má disposição, terminam em “ina”. Eu adoro a minha cafeína, a minha nicotina, fiz delas moléculas
indispensáveis ao bem-estar das minhas células. No entanto, suponho, mesmo contrariando a minha inicial teoria, ser importante que, como sociedade, produzamos novas hormonas. Com alguma indignaína para produzir a respeitaína que merecemos. É uma questão de justiçaína e de um futuruíno real e não ilusório como aquele que (nos dizem) estão a construir.
AVISO: qualquer semelhança entre as minhas considerações e a sua intrínseca solidez científica é (ou poderá ser) pura ficção