Quaresma e dor

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1. No passado dia 22 do mês de Fevereiro, Quarta-Feira de Cinzas, teve início a Quaresma, o tempo mais importante

do ano litúrgico para os cristãos.

Tempo de reconciliação e de conversão interior a preparar a Páscoa da ressurreição, traz-nos à mente os quarenta dias de jejum vividos por Jesus antes de dar início à sua vida pública, preparando as provações por que haveria de passar, tal como havia acontecido já com Moisés no monte Sinai antes de receber as Tábuas da Lei e com Elias antes de encontrar o Senhor no Monte Horeb.

Mais uma vez se iniciou com a cerimónia da imposição das Cinzas na testa dos fiéis, convidando-os à conversão e a acreditar no evangelho, logo depois de ouvir a leitura da profecia de Joel: “.... Rasgai o vosso Coração e não os vossos vestidos. Convertei-vos ao senhor vosso Deus porque ele é clemente e compassivo, paciente e misericordioso, pronto a desistir dos castigos que promete” (Jl 2,12).

Ouvia-se depois o profeta Isaías lembrando o verdadeiro jejum que agrada ao Senhor: “quebrar as cadeias injustas, desatar os laços da servidão, pôr em liberdade os oprimidos, destruir todos os jugos.

Repartir o pão com os famintos, dar pousada aos pobres sem abrigo, levar roupa aos que não têm que vestir e não voltar as costas ao semelhante. Então a tua luz despontará como a aurora e as tuas feridas não tardarão a sarar” (Is 58,6-8).

Uns dias mais tarde, ouvimos a profecia de Jonas alertando os habitantes de Nínive para a sua destruição no prazo de 40 dias. Os seus habitantes acreditaram em Deus, proclamaram um jejum e revestiram-se de saco desde o maior ao mais pequeno.

A propósito deste importante tempo litúrgico e pela riqueza da sua mensagem, mais uma vez evoco os ensinamentos de S. Pedro Crisólogo, bispo de Ravena e doutor da Igreja dos anos de 406 a 450, que falando sobre a importância da oração, do jejum e da misericórdia dizia:

A oração bate à porta, o jejum obtém e a misericórdia recebe. Oração, jejum e misericórdia são uma só coisa. Com efeito, o jejum é a alma da oração e a misericórdia é a vida do jejum. Que ninguém os divida, pois não podem ser separados. Quem pratica apenas um ou dois deles, esse nada tem. Assim, pois, aquele que reza tem de jejuar, e aquele que jejua tem de ter piedade.

Que escute o homem que pede e que, ao pedir, deseja ser escutado; aquele que não se recusa a ouvir os
outros quando lhe pedem alguma coisa, esse faz-se ouvir por Deus.

Aquele que pratica o jejum tem de compreender o jejum; isto é, tem de ter compaixão do homem que tem fome, se quer que Deus tenha compaixão da sua própria fome.

Aquele que espera obter misericórdia tem de ter misericórdia; aquele que quer beneficiar da bondade tem de praticá-la; aquele que quer que lhe dêem tem de dar.

Sê, pois, a norma da misericórdia a teu respeito: se queres que tenham misericórdia de ti de certa maneira, em certa medida e com tal prontidão, sê tu misericordioso com os outros com a mesma prontidão, a mesma medida e da mesma maneira”.

2. Neste ano a Quaresma é vivida pelos católicos portugueses com um sentimento de profunda dor ao ter tomado conhecimento da dimensão dos abusos cometidos ao longo das últimas décadas por alguns dos servidores da Sua igreja, dor acrescida pela forma tergiversante como os seus altos responsáveis se propõem encarar este gravíssimo pecado que brada aos céus.

A este propósito, lembro as palavras proferidas por Jesus aos seus discípulos: “Em verdade vos digo, se não voltardes a ser como as criancinhas não podereis entrar no reino do céu. Quem receber um menino como este, em meu nome, é a mim que recebe. Mas se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem em mim, seria preferível que lhe suspendessem do pescoço a mó de um moinho e o lançassem nas profundezas do mar (Mt 18,3-6).

Que este rico período quaresmal seja de verdadeira conversão interior e de reconciliação de modo que a Páscoa que se avizinha seja autêntica Ressurreição.

Guimarães, 7 de Março de 2023
António Monteiro de Castro

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