Exortação
Como uma enormíssima percentagem de humanos, mesmo aqueles a quem já couberam muitas décadas de vida, nunc
a imaginei vir a passar por uma provação como aquela que se tornou praticamente no único tema de notícia e de conversa.
Isto apesar de ter presente a lembrança da Gripe Asiática, que me apanhou com fresquíssimos 13 anos de vida, a qual, de semelhante a esta pandemia com que nos debatemos e que faça parte das minhas recordações, apenas teve o facto de as escolas terem encerrado. Para gáudio da minha meninice.
Assim sendo, dá-se a circunstância de eu ser testemunha de dois acontecimentos universais da mesma natureza, ainda que de diferente intensidade, como foram a pandemia de 1957 e a que agora grassa.
Tenho lido e ouvido dizer que em cada século ocorre uma pandemia, mas a verdade é que no século XX ocorreram duas, a primeira delas, em 1918 e 1919, chamada de Gripe Espanhola, ou Pneumónica, que vitimou Amadeo Sousa Cardoso, um dos maiores, se não o maior dos pintores portugueses da modernidade nos fns do Séc XIX e inícios do século XX, calamidade aquela só comparável à Peste Negra, ocorrida no século XIV, calculando-se o número de vítimas mortais desta entre 70 e 200 milhões e as da Pneumónica entre 50 e 100 milhões.
Recordo, igualmente, que, aquando da Asiática, em minha casa se falava muito, sobretudo pela voz da minha avó, em fim do Mundo, pois que então se lambiam ainda então as feridas da II Guerra Mundial e se vivia no temor de uma nova guerra, agora com uso das recém inventadas bombas de indescritível poder destrutivo, a bomba atómica e a bomba de hidrogénio, conhecida esta como Bomba H, cuja potência é milhares de vezes superior à da bomba atómica.
Eu ficava tolhido com aquelas conversas, sobretudo à mesa e quando o terço vespertino era rezado com a intenção, que a minha avó formulava, de nos livrar do fim do mundo que, segundo ela, já tinha ocorrido uma vez, com o Dilúvio Universal, um fim do mundo molhado, sendo que o próximo, augurava ela, seria de estorricantes e mortíferas línguas de fogo.
Mais racionalmente o meu avô, na altura a rondar os 80 anos, dizia que fim do mundo, verdadeiro fim do mundo, era o de cada um, quando deixava e existir.
Voltando à Asiática, temos a racionalidade e espírito prático da minha tia mais nova, segundo a qual, falando do álcool que, esse sim, então também era recomendado para desinfetar as mãos, o que desinfeta por fora desinfeta por dentro, pelo que, como preventivo, decidiu que todo os dias, após o jantar, tomaria uma colher de sopa de aguardente. Assim disse, assim cumpriu e a verdade é que foi a única lá em casa que não teve a Gripe Asiática.
Por isso eu, que só muito raramente bebo um digestivo após a refeição, acho que se há exemplo dos meus maiores que deva seguir na emergência em que vivemos, um será o dessa tia, pelo que tenho vindo, diariamente, após o jantar, a regar a série televisiva em que ando, com um copinho de velhíssima aguardente “Fonsecas & Burnay”, nome que eu já só associava a um extinto exemplar dessa curiosíssima entidade que é o sistema bancário, néctar aquele que fui desencantar num recanto da minha garagem, dentro de um garrafãozinho de dois litros, daqueles mesmo de vidro por dentro e vime entrançado por fora, com rótulo da proveniência – donde eu saber a casa que ao produziu – e que me fora oferecido há mais de vinte anos, já então com a informação de que era muito antiga.
É com certo alvoroço que, cumpridas as tarefas domésticas que antes nunca tivera motivação para executar, e também as profissionais que telecumpro (agora dá-me para inventar palavras), aguardo o momento em que, após o jantar, me sento a ver uma leve e encantadora série, filha da NETFLIX, chamada “Anna com A”, que recomendo, pois, além de ser daquelas que obrigam à reflexão, é capaz de agradar a avós, pais e filhos a partir dos 9 ou 10 anos, sobretudo se vista em família, desde que, porque cumpridas todas as regras, já possam juntar-se, ou, se ainda não é o caso, logo que possam.
Tenho cumprido a regra de ficar em casa. Felizmente, afora a falta dos beijos e abraços de filha e netos, pois que nos não visitamos, são diversos os interesses a que, finalmente, vou conseguindo dedicar-me, com o ligeiro inconveniente de que a sua diversidade me não tem deixado fixar-me devidamente em algum deles.
Muito prosaicamente, e sem que consista propriamente num interesse, antes sim numa necessidade, vou dedicar esta tarde em que escrevo, ou uma próxima, a engraxar o calçado à moda antiga, mais uma vez ensinamento da dita tia: primeiro, o líquido à cor espalhado com escova pequena; depois graxa de cor adequada ao calçado, aplicada com pano enrolando e apertando bem os dedos indicador e médio; seguem-se rápidos e vigorosos golpes de escova no sapato ironicamente calçado numa mão e brandida a escova com a outra; e, finalmente, lustro dado com um pano aí de uns 40cm de comprido por 10 cm de largo, mantendo o sapato apertado e seguro bem firme entre as pernas.
Um lado do pano é para o calçado preto, o outro para o castanho. (O Sr Júlio, com banco montado naquele sítio onde nasceu Portugal, é perito na matéria e só usa produtos e materiais de primeira qualidade. Recomendo-o.)
Caros leitores e queridas leitoras (aprendi assim com o António Guterres), para vós, primeiramente votos de saúde e, seguidamente, de muita paciência nestes tempos de confinamento.
A propósito, creio ser adequado exortar os que estão na idade a que aproveitem para, juntando o útil ao agradável, contribuírem para aumento do índice de natalidade, que tanta falta nos faz.
Os que já não estão nessa faixa etária, não se importem de não contribuírem para a natalidade.
Sem esquecer o motivo principal, também por esse, fiquem em casa.
Guimarães, 31 de março de 2020
António Mota-Prego
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