A primeira vez

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A primeira vez não tem necessariamente que ser boa. Mas basta ser a primeira vez para ter a magia que as coisas feitas pela segunda, terceira, ou quadringentésima segunda vez não têm. E isso é uma fatalidade que em vez de se iludir tem que se aceitar. Serenamente.

 

O facto da primeira vez que fazemos ou sentimos qualquer coisa de importante ser inevitavelmente quando somos novos torna a coisa ainda mais espetacular. As hormonas são uma espécie de fogo de artifício dos sentidos. Quando elas estão devidamente ligadas, a nossa existência passa a ser uma romaria diária, ou quase.
A primeira vez com uma rapariga. A primeira vez que uma música nos bate mesmo a sério. A primeira vez que um livro deixa de ser um objeto que se lê para ser um objeto onde se vive. A primeira vez que temos um filho nos braços. A primeira vez em que olhamos realmente o mar. Esse prazer convive – aparentemente sem paradoxo - com as primeiras vezes que queremos e não sentimos nada de particularmente agradável: a primeira vez que fumamos, a primeira vez que bebemos cerveja, a primeira vez que vamos acampar. Destas três más experiências só a última nunca me deu prazer algum. Percebi logo que aquilo não era para mim. Primeiro a ciclópica tarefa de montar a tenda, depois o chão, e o frio ou o calor. Uma maçada do primeiro ao último minuto. Curiosamente as duas primeiras “más experiências” ficaram: o que significa que a minha biologia nada percebe de biologia.

Na primeira vez que vi cinema já tinha visto muitos filmes antes. Colecionava filmes pelo ócio ou quando o nevoeiro, em férias, assim o ditava. E foi exatamente no Póvoa-Cine que ao ver Touro Enraivecido comecei a levitar. O que era aquilo? A partir daí o cinema deu-me muitas mais primeiras vezes. A primeira vez que ouvi Decades dos Joy Division fiquei esmagado. Só recuperei (estranhamente) por hipnose fixando o símbolo da Factory Records rodando a 33 rotações por minuto ... e a primeira vez que ouvi com o meu amigo Paredes o Remain in Light dos Talking Heads. Tantas vezes o faríamos que esse deve ser o único álbum de música que eu sei a letra de todas as músicas. E ele também.
A primeira vez que vi e experimentei o sistema de janelas de um computador Apple Macintosh. A primeira vez que comi rabo de boi com grão de bico na Adega Vila Lisa. A primeira vez que andei de avião. Fui sozinho nessa minha primeira aventura aeronáutica e perguntei ao meu vizinho de viagem para que serviam aqueles sacos plásticos e ele disse-me que eram sacos de vómito, mas que já andava de avião há anos e nunca tinha visto ninguém usá-los: para ele foi também a primeira vez ... que viu alguém a vomitar no avião. A primeira vez em que nos sentimos impotentemente apaixonados por alguém. A primeira vez que eu falhei ao tentar matar um pássaro com uma fisga. Nesse aspeto foi para mim sempre uma primeira vez já que nunca matei nenhum. Não por qualquer consciência ecológica mas por uma tremenda falta de pontaria.

A memória, ou a falta dela, mitifica a primeira vez. Ainda há uma semana, nesta coluna, o António discorreu tão bem sobre o frio que impiedosamente lhe tolhia a concentração no terço e se manifestava cortante apesar da braseira, e do gato. Foi como se fosse também uma primeira vez.
A primeira vez é sempre irrepetível e mais irrepetível se torna com o passar dos anos pois o nosso cinismo individual tende a ocupar progressivamente o espaço do deslumbramento.

Nada há que estabeleça que não exista sempre e ainda uma primeira vez.
Há poucos dias ouvi pela primeira vez a música Early de Joy Crookes ... I can’t believe it! Não fiquei propriamente esmagado mas fiquei mais leve, o que me permitiu apertar os cordões dos sapatos com mais facilidade. E só isso já justificaria, para mim, a importância cósmica desse tema.
Hoje estou, pela primeira vez, no dia 20 de novembro de 2019 e isso tem, pela sua novidade, algum deslumbre. Mais uma primeira vez que se esgota, mas existe enquanto primeira vez. A beleza do efémero está na impossibilidade de se repetir e não seguramente na sua circunstância.

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