Um fantasma ao frio
O meu organismo é muito dado às estações do ano. E como feito que sou de corpo e espírito, também este me pede regularidade climática, de tal modo que corpo e espírito, sendo inseparáveis, no que ao assunto respeita sinto como que uma mais intensa fusão entre a matéria e o incorpóreo que constituem a criatura que, para escrever estas linhas, precisa de ambos aqueles elementos, ainda que em partes desiguais, pois muito maior é a necessidade do invisível do que do visível de que é feito.
O meu organismo é muito dado às estações do ano. E como feito que sou de corpo e espírito, também este me pede regularidade climática, de tal modo que corpo e espírito, sendo inseparáveis, no que ao assunto respeita sinto como que uma mais intensa fusão entre a matéria e o incorpóreo que constituem a criatura que, para escrever estas linhas, precisa de ambos aqueles elementos, ainda que em partes desiguais, pois muito maior é a necessidade do invisível do que do visível de que é feito. Preciso do calor no verão e do frio no inverno, assim como do alegre colorido da primavera e das quentes cores do outono. E pena tenho de há bem mais de 10 anos não ver Guimarães coberta com o branco da neve.Sou, realmente, afetado pelas alterações climáticas de que resulta o aquecimento que nos vai adulterando o inverno como normalmente era “antigamente”, para o qual o corpo nasceu preparado e de que o espírito guarda memória.E, mesmo quando agora temos o que se diz ser muito frio, não é um muito frio como o antigo.Porém, se a falta desse frio antigo, feito de baixas temperaturas durante quase todo o inverno, me causa algum desconforto, não deixo de me comprazer com o facto de hoje se dispor de meios que eliminam, ou pelo menos grandemente abrandam, algumas da consequências mais gravosas dessas baixas temperaturas que, porventura, saudosas de se revelarem, fazem uma ou outra esporádica e breve surtida aos tempos de agora.Lembro bem as vezes que nos invernos de há mais de meio século o meu Avô, médico com alma de João Semana, falava das inúmeras pneumonias que era chamado a tratar, não raro durante a madrugada, pois que então às urgências eram os médicos particulares que atalhavam em casa dos doentes, não importando a que hora do dia ou da noite. Só que o meu Avô, chamado para as freguesias das redondezas, não ia de burro, mas sim de automóvel conduzido pela filha que tinha carta de condução ou, quando impossível assim ser, de táxi, que tantas vezes pagava do seu bolso. Apesar do apreço que sinto pelo conforto que hoje trazem, de modo praticamente generalizado, o aquecimento central e os novos materiais e métodos de construção, não deixo de recordar com certo enlevo os fins de tarde e princípios da noite passados à braseira, pernas debaixo de mesa redonda em ferro, para minorar as hipóteses de incêndio, coberta por camilha que mantinha o calor ali confinado, ao qual as minhas tias eram de tal forma apegadas que, a partir de alguns dias de tal deleite, se exibiam mutuamente as coxas para compararem a quantidade e grau de “morrões” – assim chamavam às queimaduras superficiais – que as suas referidas anatomias ostentavam em consequência do calor das brasas, mantidas bem acesas por um papel de prata.E havia o gato a quem era permitido enroscar-se sobre a mesa sempre que o quisesse, havia o crochet da minha avó e o tricô das minhas tias, o terço de todos nós em que pontificava a avó, que era a primeira a “lançá-lo” e que ia misturando a recitação de Ave-Marias e Santas-Marias com a contagem dos quadrados de crochet que ia elaborando enquanto se rezava, tudo na maior devoção, reza e croché, tendo eu a consciência de que a minha não era maior que a das demais, apesar de ser o único orante a quem não era permitida a mínima atividade que não fosse aquela de orar, o que me treinou – e isso me foi útil até hoje – na completa imobilidade, no caso de mãos entrelaçadas sobre a mesa, apenas me permitindo, provavelmente porque avó e tias de tal se não apercebiam, movimentar os olhos entre o teto, onde nada acontecia, e o gato cujo único movimento percetível era o do sobe e desce do tórax, em virtude da respiração sem a qual seria dedutível que ele perdera a sétima das suas vidas. Recordo que uma vez, esquecido desse dever da imobilidade, entre o fim de uma Santa-Maria o início da subsequente Ave-Maria (foi assim mesmo, e não ao contrário) uma das mãos me fugiu para afagar o gato e, esquecido de que tal necessariamente aconteceria, as costas de uma outra mão, certeira mesmo sem que a sua senhoria sequer desviasse o olhar da malha do croché, se me esbarrou na bochecha mais a jeito, ao que o gato num admirável reflexo deu um espantoso e circense salto para fora da mesa, como se tivesse sido ele o alvo da certeira sevícia.Rimo-nos todos muito, eu de olhos marejados de lágrimas, e o terço lestamente prosseguiu.Recordo, ainda, ver pelas paredes centrais descerem inúmeros fios de água fruto da humidade que se concentrava na claraboia que iluminava as volutas das escadas que levavam do terceiro andar ao rés do chão, recordo o peso dos cobertores da serra, a que chamavam cobertores “de papa”, assim como as botijas de folha de flandres, que rapidamente ganham furos nas zonas de solda, molhando o interior da cama, e, aos domingos, cedíssimo pela manhã, o lento ranger dos degraus das escadas que faziam a ligação do último andar à porta da rua, sinal de que as empregadas (havia duas, ditas uma “de fora”, e outra “de dentro”, expressões que por si só justificariam um tratado) saíam para a missa, e desciam com extrema precaução para não acordarem ninguém, já que as escadas eram traiçoeiramente rangedoras. Também porque saíam muito mais cedo do que o necessário para chegarem atempadamente à missa. Namoros!Lembro também que, não sei por que asneira levada a cabo ainda criança, me disserem, usando expressão que os tempos amaldiçoaram primeiro, e proibiram depois: de castigo hoje vais dormir com as criadas! E eu obedeci.Entretanto, com o amadurecer da minha juventude aprendi a fintar as escadas, para que não houvesse a perceção das desoras a que as pisava, pousando os pés, não no centro dos degraus, mas bem nos extremos laterais deles. Assim me tornava fantasma!Pouco dado a nostalgias, não deixo de repetir que me faz organicamente falta o frio de antanho, mas, acrescento, abunda o calor das memórias que lhe trago associadas.
Guimarães, 12 de novembro de 2019
António Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.
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