O jogo da glória
“A nossa ignorância permitia-nos viver, tal como quando estamos numa montanha e a corda está gasta e prestes a rebentar, mas nós não sabemos e prosseguimos a escalada.”
Primo Levi. O sistema periódico. 1975.
Todos nós temos, em maior ou menor grau, a síndrome “no meu tempo é que era” tanto mais grave quanto mais distante esteja o tempo em que, eventualmente, era. A realidade passada é mitificada pelo passar do tempo, pela correspondente falta de memória e pelas compreensíveis saudades de uma época em que os nossos erros eram solucionados com uma bofetada e não se falava mais sobre isso. O erro e a punição eram resolvidos ali mesmo, sem providências cautelares, e, na maior parte das vezes, sem duradouros ressentimentos.
O linear método educativo da bofetada apesar de estúpido, e quantas vezes injusto, estabelecia um inamovível cordão sanitário entre o mundo dos adultos e o mundo das crianças. Havia ali uma barreira entre esses mundos. Hoje a capilaridade entre o mundo das crianças e dos adultos é total. Os problemas das crianças contaminaram o mundo dos adultos. Os pais são hoje uma espécie de advogados de defesa dos seus filhos ... e ao estilo americano. Os problemas dos adultos são hoje igualmente problemas das crianças. A mamã e o papá gostam muito de ti mas não gostam suficientemente um do outro, percebes? E, note-se, eu não estou a advogar uma realidade sobre a outra. Estou apenas a ver aquilo que o meu subjetivo entendimento torna visível.
E as coisas hoje, comparadas com “o meu tempo”, são de uma brutal complexidade. Coro de vergonha ao ver um episódio das séries que eu “no meu tempo” considerava excecionais. Todas juntas eram menos complexas que o genérico de uma série de hoje. O sucesso do Jogo da Glória será com certeza um reflexo desses tempos (aparentemente) menos complexos. Passávamos horas a jogar um dado e a percorrer as casas: 36 avança 3 casas, 17 volta ao início, 26 torna a jogar. O mundo estava concentrado no aleatório rodar de um dado e na simplicidade daquela coisa a que se chamava jogo.
Hoje as séries, o cinema, os jogos são muitas vezes de uma complexidade forçada e artificial, só porque sim. Personagens difíceis e bipolares, serial-killers, personagens míticos e mágicos que só encontramos na imaginação delirante. A normalidade não interessa hoje. Adoro o realizador John Ford e revi recentemente Cavalgada Heroica/Stagecoach (1939). Uma cobóiada dir-se-ia na altura. Estão confinados numa diligência um fora-da-lei, uma prostituta de bom coração, um médico bêbado, um banqueiro corrupto, um jogador. Personagens normais numa situação anormal, e quanto mais perigosa a situação se torna melhor se conhecem os acompanhantes, como acontece aliás nas nossas vidas. Retive as seguintes frases do banqueiro corrupto “a América para os americanos” e “o que este país precisa é de um homem de negócios para Presidente”: um apoiante de Trump e um visionário avant la lettre! Prefiro decididamente que o cinema seja sobre pessoas normais em situação anormais e não propriamente pessoas anormais em situações normais.
A simplicidade do Jogo da Glória mostrava-nos a “simplicidade” da vida. Se vamos para trás só nos resta lançar novamente o dado e avançar. Complicar seria assim um exercício inútil e depressivo.
De cada vez que entro na Fábrica do Castanheiro, como no último sábado, fico deprimido. A memória da indústria têxtil de Guimarães está a escorrer-nos pelos dedos como areia fina. As indústrias que fizeram o século XX de Guimarães desaparecem sob os nossos olhos, inexoravelmente. A exposição atualmente no Arquivo ou a exposição que Muralha exibiu no Paço dos Duques Das casas, Lugares e Tradições são pequenos gritos de alerta para a perda contínua de fábricas, de máquinas, de memórias. Mas claramente insuficientes. Mais uns anos e nada restará da história recente que nos tornou uma comunidade viva e ativa. Estamos, neste particular aspeto, a andar para trás e a voltar sempre ao início do jogo ... até que o tabuleiro desapareça. Definitivamente. Resgatar um desses espaços ao interesse imobiliário ou às silvas seria, a meu ver, um imperativo político e comunitário. Uma questão de memória e de reconhecido tributo.
Quando escrevo estas crónicas escrevo para que elas sejam lidas e, uma vez por outra, possam ter algum interesse. Por isso aprecio até as críticas que me fazem, pois é sinal que alguém leu. Um amigo meu criticou-me por eu ter esquecido, na minha última crónica em que falei dos festivais de música, a Festa do Avante. Um importante e duradouro acontecimento que em termos musicais nos trouxe Archie Shepp, os Dexys, o Chico Buarque ou o Charlie Haden e leva já 43 anos ininterruptos. Tem toda a razão. Nunca fui à Festa do Avante pois quando a festa tinha concertos que eu queria ver não tinha idade para ir, e quando podia ir já não tinha interesse no que lá passava. Mas isso às tantas é uma desculpa esfarrapada para disfarçar o preconceito. Uma desculpa inútil como a falta de sorte no Jogo da Glória.