Fado e eleições

  1. images/opiniao/antonio_mota_prego-8.JPG
    1. Acontece-me com alguma frequência acordar a meio da noite e ficar bom período de tempo acordado, sem poder retomar o sono.  Quando assim acontece, nessa vigília o pensamento ou me leva a façanhas espantosas, ou me ajuda a encontrar caminho de resolução de assuntos que tenho para resolver ou, porventura mais frequentemente, me mete no saco das preocupações; seja como for, em todos esses casos tais pensamentos pouco, nada, ou até pelo contrário, contribuem para que o invisível manto do sono volte a cobrir-me. Desde há muito que nessas ocasiões procuro afastar os pensamentos que dificultam a vitória sobre a insónia ouvindo rádio, através de pequenos auscultadores que me trazem o som desde o recetor até aos ouvidos, e normalmente resulta, e até se dá o curioso facto de o que passa no rádio me induzir sonhos derivados do que, mesmo a dormir, ouço sem ter a consciência de ouço. Como tenho facilidade em recordar os sonhos, não calculam, caros leitores, as coisas interessantes, frequentemente cómicas e as mais das vezes surrealistas que nos meus sonhos se passam. Alguns até os escrevo; sei lá se um qualquer dia os seus relatos sejam matéria digna de estudo da mente humana e do infinito acervo de obrenóxios pensamentos que alberga. Esclareço que a palavra obrenóxios não é invenção minha nem produto de acontecimento sonhado, mas sim usada pelo escritor Dinis Machado no seu “O que diz Molero”. Uso-a porque a acho muitíssimo adequada ao que com ela se pretende dizer. Mas também acontece de a causa – rádio – não produzir o desejado efeito – sono – e então calha-me de ouvir programas interessantíssimos, notícias de última hora, entrevistas de rico conteúdo e, claro música, as mais das vezes de qualidade. Foi o que aconteceu numa recente noite, em que ouvi conversa entre o locutor e a cantora e fadista Mísia, que sempre apreciei pela qualidade dos temas que canta, tanto lírica como musicalmente, pela limpidez da voz e da dicção e pela originalidade do arranjos e da interpretação. Há muito que não ouvia Mísia, cuja carreira, aliás, se tem desenvolvido mais em Espanha e França do que em Portugal, o que não impede que já tenha dado um valioso contributo para o enriquecimento da cultura portuguesa nas vertentes da canção e do fado. Fiquei a saber que recentemente venceu dois cancros surgidos em curto espaço de tempo e editou um novo álbum de fado, intitulado “Pura Vida – (banda sonora)” fortemente influenciado pela agitação da atmosfera provocada pelo bater de asas da “Senhora Dona Morte” a que Florbela Espanca se entregou e Mísia espantou. Ouvi o álbum todo e, finda a audição, percebi que me encontrava em estado de espanto. Eram fado, fado triste, as melodias, mas a convergência da voz cristalina da cantora, com a qualidade dos poemas e a surpresa dos arranjos fazem da obra, no seu conjunto, algo de superior. Diálogos, entre voz e clarinete baixo, introdução de sons de guitarra elétrica tangida em modo distorcido, violino, bandoneon, piano, e, claro, momentos de melodias, ou mesmo simples notas soltas, criteriosa e superiormente obtidas da imprescindível guitarra portuguesa, são os elementos de que é feito o álbum, que não hesito em considerar uma obra-prima. Está no YouTube e vale a pena ouvir.

    2. Vamos ter eleições no dia 6 de outubro. Apesar de secreto o voto, é antecipadamente público qual será o meu, e nem precisarei de dar parte das razões pelas quais mais convictamente do que em anteriores eleições legislativas estou convicto do mérito daquele que concretamente vou depositar.Mas há algo de francamente positivo neste ato eleitoral que devo realçar: a civilidade com que a campanha eleitoral tem decorrido até agora, com especial enfoque nos debates que têm ocorrido entre os líderes partidários. Os seus índices de audiências têm sido francamente superiores aos verificados em anteriores atos eleitorais, para o que estará a contribuir, precisamente, o facto que acabo de referir e que poderá, oxalá assim seja, levar a que haja uma significativa diminuição da abstenção. Com efeito, os debates em que os intervenientes estão sempre a interromper os seus adversários, a tentar sobrepor a sua voz à destes, geram um clima de desinteresse e, pior ainda, de alguma hostilidade contra os participantes. Estou confiante em que este clima se mantenha no essencial, sem prejuízo de ter bem consciência que o período da campanha eleitoral oficial é mais propício a satisfazer a rua, isto é, a emoção, do que o espectador, ou seja, a reflexão; sem prejuízo da consciência que também tenho de que os atos eleitorais carecem de uma componente festiva, não devendo quedar-se por meros rituais de ensaiado bom comportamento. Este modo, a que temos assistido, de fazer debate político, que outra coisa não é, na presente conjuntura, senão fazer campanha eleitoral, merece ser compensada por uma grande afluência dos eleitores às urnas. Na medida em que eu mereça ser atendido no que vou pedir, a quantos me lerem peço que não deixem de votar e que levem a votar quantos, sem a sua intervenção, porventura o não fariam.

    Guimarães, 16 de setembro de 2019 
    António Mota-Prego Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.

Imprimir Email