O esternocleidomastoideu
““(...)Quando se deu uma borla fiscal de várias centenas de milhões de euros aos restaurantes, fez-se uma opção. Favoreceu-se os restaurantes em detrimento dos professores ou dos serviços públicos ou de outras empresas. É legítimo, mas é uma preferência, não é uma ausência de alternativa.”
Luís Aguiar-Conraria in Público. 8 de maio 2019.
Luís Aguiar-Conraria in Público. 8 de maio 2019.
Sou um fã do cinema português dos anos 30 e 40. Já gastei algumas horas em discussões impossíveis com amigos meus que gostando do Botelho, do Oliveira - como eu gosto - não são tocados pelo excecionalidade desse cinema português, ou por preconceito mesquinho ou então na ausência absoluta de sentido de humor. Recordo-lhes sempre uma cinematografia bem mais poderosa que a nossa – a italiana – e o respeito que sempre tiveram por Totò. Realizadores intocáveis como Rosselinni, De Sica ou Pasolini filmaram-no depois dos anos de popularidade do ator. Mas enfim, particularidades dos intelectuais portugueses.
A Canção de Lisboa de José Conttinelli Telmo, filme de 1933, é sem dúvida o meu favorito. Sei-o (praticamente) de cor pois já o vi dezenas de vezes. Adoro o filme, não só pelos excelentes atores que interpretam superiores personagens, mas porque o filme é Portugal. É o Portugal de então e continua a ser o Portugal de agora. Não há nada que nele não caiba. E isso é de génio!
A falsa opereta lançada por António Costa a propósito da recuperação do tempo de serviço dos professores também cabe – por cínico absurdo - n’ A Canção de Lisboa.
Vasco Santana representa os professores, calaceiros e mestres no expediente (“ora 20 macacos a 20 macacos, são 400 macacos!”), sempre pronto a enganar as tias, o Estado, com a sua frase “então sou ou não sou doutor?!”, o António Silva é o António Costa, sempre lesto a tirar vantagem das situações, ora encosta-se ao Vasquinho para obter quinhão na fortuna das tias, ora logo o descarta se vê que as tias dele desconfiam, e o sapateiro são os outros. Quando nos dias seguintes vi o afã das televisões a entrevistar polícias, magistrados e enfermeiros, e a forma patética como embarcaram no guião jornalístico lembrei-me da frase do sapateiro quando o Vasquinho e o António Silva estavam (ainda) em lua-de-mel: “ou comem todos, ou há moralidade!”. O que é tipicamente português. Em vez de esperarem para reivindicar o mesmo – já que, saiba-se, as carreiras gerais da função pública já recuperaram, para efeitos de progressão, o tempo congelado– e terem um argumento sólido para lutarem pelos seus direitos, procuraram desbaratar à partida as (frugais) conquistas dos outros.
Não faltaram porém mais sapateiros no comentário político e na escrita. Já de há muito que não ouvia tão comovente unanimidade e ignorância de comentadores. Alguns deles que mais não fizeram na vida do que subir, descer e voltar a subir o íngreme escadote da política, sem uma experiência profissional digna de registo ou qualquer empatia pelos outros que não eles mesmos. E o curioso é que muitos deles se arrepelam com Donald Trump, com a sua boçalidade analítica, mas o grau de profundidade no comentário não diferiu muito da do presidente americano.
A Canção de Lisboa de José Conttinelli Telmo, filme de 1933, é sem dúvida o meu favorito. Sei-o (praticamente) de cor pois já o vi dezenas de vezes. Adoro o filme, não só pelos excelentes atores que interpretam superiores personagens, mas porque o filme é Portugal. É o Portugal de então e continua a ser o Portugal de agora. Não há nada que nele não caiba. E isso é de génio!
A falsa opereta lançada por António Costa a propósito da recuperação do tempo de serviço dos professores também cabe – por cínico absurdo - n’ A Canção de Lisboa.
Vasco Santana representa os professores, calaceiros e mestres no expediente (“ora 20 macacos a 20 macacos, são 400 macacos!”), sempre pronto a enganar as tias, o Estado, com a sua frase “então sou ou não sou doutor?!”, o António Silva é o António Costa, sempre lesto a tirar vantagem das situações, ora encosta-se ao Vasquinho para obter quinhão na fortuna das tias, ora logo o descarta se vê que as tias dele desconfiam, e o sapateiro são os outros. Quando nos dias seguintes vi o afã das televisões a entrevistar polícias, magistrados e enfermeiros, e a forma patética como embarcaram no guião jornalístico lembrei-me da frase do sapateiro quando o Vasquinho e o António Silva estavam (ainda) em lua-de-mel: “ou comem todos, ou há moralidade!”. O que é tipicamente português. Em vez de esperarem para reivindicar o mesmo – já que, saiba-se, as carreiras gerais da função pública já recuperaram, para efeitos de progressão, o tempo congelado– e terem um argumento sólido para lutarem pelos seus direitos, procuraram desbaratar à partida as (frugais) conquistas dos outros.
Não faltaram porém mais sapateiros no comentário político e na escrita. Já de há muito que não ouvia tão comovente unanimidade e ignorância de comentadores. Alguns deles que mais não fizeram na vida do que subir, descer e voltar a subir o íngreme escadote da política, sem uma experiência profissional digna de registo ou qualquer empatia pelos outros que não eles mesmos. E o curioso é que muitos deles se arrepelam com Donald Trump, com a sua boçalidade analítica, mas o grau de profundidade no comentário não diferiu muito da do presidente americano.
O que realmente me magoou e magoa enquanto professor não é o malabarista do Costa ou o (falso) sonso do Centeno ou o parlamento, são os sapateiros! A “unanimidade” na incompreensão da luta dos professores é insana pois oblitera as dificuldades pelas quais os professores passaram e passam para manter, apesar das mudanças constantes de rumo político na educação e de serem (injusta mas repetidamente) o bode expiatório de ocasião, a qualidade do ensino público português que é, saiba-se, o único instrumento que os filhos dos mais desfavorecidos têm para saírem da situação em que se encontram.
Penso que a qualidade da escola pública portuguesa é inegável. Tenho a convicção de que começa a ser raro um país que consegue que os seus filhos frequentem a escola pública e estejam preparados para serem bons e reconhecidos profissionais. Eu, a minha mulher, as minhas filhas tivemos (e duas ainda têm) da escola pública um contributo inestimável para o que somos hoje. Perceba-se a voracidade gulosa com que a Inglaterra aceita os nossos médicos e enfermeiros, ou a forma festiva como a Alemanha recebe os nossos jovens engenheiros. O problema de Portugal não é a qualidade do ensino público, mas o que fazemos, enquanto país, com essa qualidade com que formamos os nossos jovens. Os Estados Unidos, a França, a Inglaterra já há muito que não têm um ensino público de qualidade. A qualidade passou para os privados e paga-se bem. Ter a possibilidade de viver num país fabuloso como o nosso e haver ainda um sistema público de ensino que permite que os filhos das famílias com mais dificuldades o frequentem e almejem à mobilidade social é, seguramente, uma bênção a que não damos o devido valor. Aliás a prova de que o ensino público português é mesmo bom é que nem Sócrates, nem Relvas nele se licenciaram. Este último, desenterrou-o das trevas o jornal Público, para que viesse ensombrar Rui Rio dizendo que são necessários “princípios e valores”: ora cá está um ponto forte de Miguel Relvas. E eu que julgava que bastaria uma posição firme de Miguel Relvas para os sapateiros defenderem o contrário, ou pelo menos duvidarem da sua posição. Enganei-me.
A esmagadora maioria dos professores reformar-se-á dentro dos próximos 10 anos. Não há jovens a formarem-se para professores. Por via da dificuldade de progredir na carreira (eu tenho 26 anos de serviço e estou no 4º escalão de um total de 10!) e do veneno que se lança com particular eficácia como um anátema, já ninguém quer hoje ser professor. Quando a maioria dos professores se reformarem os desgraçados dos professores, hoje com trinta e muitos ou com quarenta e poucos, que percorrem o país de lés a lés para tapar buracos sempre com a tonta ilusão de que haverá algures um lugar para eles, vão estar nessa altura exaustos e velhos sem qualquer lágrima restante gasta ao longo destes anos de incerteza e desespero e incompreensão.
Aí a escola pública vai cair com estrondo e, como de costume, haverá então um nicho de oferta de ensino de qualidade para as classes mais favorecidas, mas apenas para essas. Provavelmente alguém vai então condescender na fúria que hoje alimenta e dizer que o Vasquinho afinal até sabia o que era o mastoideo. Mas nessa altura vai ser tarde demais. Infelizmente.
Aí a escola pública vai cair com estrondo e, como de costume, haverá então um nicho de oferta de ensino de qualidade para as classes mais favorecidas, mas apenas para essas. Provavelmente alguém vai então condescender na fúria que hoje alimenta e dizer que o Vasquinho afinal até sabia o que era o mastoideo. Mas nessa altura vai ser tarde demais. Infelizmente.
Rui Vítor Costa