Mês de Maio
SÃO HORAS!
O anúncio ecoava, altissonante, pouco antes das sete horas da tarde, lá do 2º andar do nº 145 da rua de Santo António, para que fosse ouvido no 1º andar, onde eu, na chamada sala de visitas, acabava a maioria das tardes entretido ao piano. E era assim quase todos os dias dos maios das minhas primícias de adolescente.
Porquê só em maio, perguntar-se-á, e a resposta é óbvia: porque era o mês de maio.
Mas não só por isso, que é o principal; também por razões adjacentes e com consequentes que vou tentar descrever o melhor que a minha outonal memória permitir.
A minha avó era muito religiosa e tinha devoções especiais, desde os Três Pastorinhos, particularmente Lúcia, cuja eloquente descrição do Inferno a minha avó não se cansava de transmitir-me, até ao Santo Padre Pio, que era o cronologicamente mais moderno da plêiade de santos e santas que lhe preenchiam a religiosidade, cujas graças por ela solicitadas eram, dizia ela, antecedidas, pouco antes da sua concessão, de um perfume envolvente do retrato do Santo, ocasiões em que a devota senhora me chamava e ordenava que, junto à moldura com o retrato, inspirasse profundamente – Sentes o cheiro, sentes?, ao que eu, após inúmeras e vigorosas inspirações na frente e dos lados da moldura, invariavelmente respondia que sim.
O anúncio que abre esta crónica, debitado pela minha avó, era para que eu me preparasse para a acompanhar à igreja de S. Pedro, no Toural, e aí participar na diária cerimónia do mês de Maria, consistente na reza do Terço, constituído – faço a descrição porque pode haver quem não saiba – por cinco séries de dez Ave Marias, chamadas Mistérios, intervaladas com duas outras orações, Glória e Pai Nosso, terminando com a Salve Rainha e mais três Ave Marias. Na sua versão completa, que era a do mês de Maria na igreja de S. Pedro, cada mistério era antecedido por uma Contemplação, por exemplo: “Primeiro Mistério: contemplemos…”, e seguia-se a Contemplação, sendo esta una na exortação, mas plúrima no que se contemplava, pois diferente para cada Mistério. Terminadas todas as orações do Terço, proferia-se, finalmente, uma extensa ladainha dedicada à Senhora de Fátima, quase toda ela constituída pela enunciação dos Seus excelsos e exclusivos atributos.
Importante: para assinalar a última Ave Maria de cada Mistério, avisando os fiéis que se seguiria o ritual do Mistério seguinte, o ajudante da cerimónia tocava uma campainha de quatro campânulas e som agudo, seguindo-se o arranque de um órgão que acompanhava os fieis no canto do hino em louvor da Senhora de Fátima, popularmente conhecido por “A Treze de Maio”, melodia que hora a hora é ainda hoje entoada pelo carrilhão da igreja de S. Pedro, se bem que só a sua primeira parte, e em prestações debitadas a cada quarto de hora, frequentemente com falha de algumas notas.
Nos raros dias em que chuva intensa desaconselhava a ida à igreja, o Terço rezava-se em casa, o que, aliás, acontecia quase diariamente ao longo do ano, de tal modo que a aprendizagem do Terço por mim foi concomitante com a da fala. Mas o terço que se rezava em casa era na sua versão básica, ou seja, sem Contemplações e sem a Ladainha, o que me convenceu de que nem a minha avó nem as tias sabiam contemplar, nem a memória lhes albergava a Ladainha.
O Terço doméstico era rezado por apenas quatro criaturas: três senhoras, avó e duas tias, e eu.
Diz-se que as mulheres conseguem fazer mais do que uma coisa ao mesmo tempo e posso testemunhar que, no caso, a minha avó cumulava o terço com o croché, jamais se enganando em que Ave Maria íamos nem em que quadrado do mapa do crochet estava, e as tias conjugavam irrepreensivelmente a reza com o perfeito manejo das agulhas com que confecionavam malha.
Eu, porque não era mulher, só rezava, até porque qualquer tentativa de movimento que não fosse coçar a cabeça ou explorar o ouvido, ou o nariz, era-me assinalado com um daqueles atos a que atualmente se chama de ofensa corporal e, quando praticados no recato do domicílio comum, violência doméstica.
Mas na altura os atos em causa – “poucas, boas e dadas a tempo”, lema da tia mais nova, eram de ministração de respeito e fonte de boa educação, donde a conclusão, sábia e rapidamente tirada perante qualquer criança ou adolescente em ato menos educado, de que o mal radicava na falta de uns bons pares de bofetadas. No mínimo!
Ora, um dia do ano anterior ao do maio específico de que vou falar, o saudoso Sr Guise, a quem se deve a existência da última banda de música que houve em Guimarães, a Banda dos Guises, e que foi na nossa terra o primeiro distribuidor de gás Cidla, logo nos alvores da passagem da lenha para os gás como combustível para confeção das refeições, ofereceu-me um mealheiro que era uma miniatura de uma botija de gás.
Em agosto do mesmo ano, em período de Festas Gualterianas, um casal que já não lembro quem fosse, foi visitar as minhas tias e, com a já falada mais nova, que me levou com ela, fomos dar uma volta pela zona das “barracas”; o dito casal ofereceu-me uma harmónica, instrumento mais conhecido por “gaita de beiços”, cuja técnica rapidamente apreendi de tal modo que no maio do ano seguinte já o dominava eximiamente.
Em certo dia desse maio, com um fim de tarde fortemente pluvioso, o Terço foi rezado em casa.
Passou-me pela cabeça que seria apreciado que eu aproximasse o mais possível o Terço caseiro daquele que se praticava na igreja, e, mais que isso, que o fizesse de surpresa.
O local em que o Terço era rezado era à volta de uma mesa redonda, de camilha até ao chão, sob a qual se metiam as pernas e onde eu disfarçadamente introduzi os apetrechos de que me fiz portador: o mealheiro e a gaita.
Iniciada a reza, tive o cuidado de contar rigorosamente as Ave Marias do primeiro Mistério e, chegado à “hora da nossa morte” da última delas, rapo do mealheiro e abano-o fazendo tilintar, tipo campainha, as poucas moedas que guardava, o que fez com que o oração ficasse repentinamente em suspenso, um silêncio condizente com a evocada “hora da morte”, as senhoras fitando-me intensamente surpreendidas e, perante o silêncio e imobilidade que se fizeram, que eu tomei por aquiescência, eis-me a avançar, soprando de olhos, só os olhos, voltados para o alto, a gaita de beiços entoando, impecável e solenemente, o “Treze de Maio”.
O que se seguiu foi muito engraçado.
A avó manteve-se de boca aberta, porventura porque dada a idade tinha mais dificuldade em sair do espanto, e as tias largaram, felizmente, as agulhas da malha, para num ápice me premiarem com os vários tipos de atos educativos: primeiro, céleres, surpreendentes e de rajada, vieram umas chapadas, das quais me defendi baixando a cabeça contra a mesa e protegendo-a com as mãos, ao que, por ter deixado o pescoço apetecivelmente a descoberto, se seguiu uma salva de enérgicos cachaços, o que me obrigou a rápida e cobarde retirada que, mesmo assim, não evitou uma bengalada desferida pela tia mais velha, arma que, por ter sofrido de poliomielite usava desde criança e, por isso, qual espada de mosqueteiro, manejava com a máxima maestria.
Refugiei-me a choramingar no meu quarto, suficientemente baixo para ter conseguido ouvir as minhas educadoras a rirem-se discretamente enquanto comentavam – O raça do rapaz teve graça!
Curiosamente no Liceu, onde gastava os meus doze ou treze anos, por ser maio foi-nos prescrita redação subordinada ao tema “A Primavera”.
Inspirado, e em jeito de exorcismo, a minha começou assim: “O mês de maio é cheio de beleza, alegria e devoção!, e terminou com “Seja em que mês for, eu hei de sempre gostar muito do mês de maio”.
O anúncio ecoava, altissonante, pouco antes das sete horas da tarde, lá do 2º andar do nº 145 da rua de Santo António, para que fosse ouvido no 1º andar, onde eu, na chamada sala de visitas, acabava a maioria das tardes entretido ao piano. E era assim quase todos os dias dos maios das minhas primícias de adolescente.
Porquê só em maio, perguntar-se-á, e a resposta é óbvia: porque era o mês de maio.
Mas não só por isso, que é o principal; também por razões adjacentes e com consequentes que vou tentar descrever o melhor que a minha outonal memória permitir.
A minha avó era muito religiosa e tinha devoções especiais, desde os Três Pastorinhos, particularmente Lúcia, cuja eloquente descrição do Inferno a minha avó não se cansava de transmitir-me, até ao Santo Padre Pio, que era o cronologicamente mais moderno da plêiade de santos e santas que lhe preenchiam a religiosidade, cujas graças por ela solicitadas eram, dizia ela, antecedidas, pouco antes da sua concessão, de um perfume envolvente do retrato do Santo, ocasiões em que a devota senhora me chamava e ordenava que, junto à moldura com o retrato, inspirasse profundamente – Sentes o cheiro, sentes?, ao que eu, após inúmeras e vigorosas inspirações na frente e dos lados da moldura, invariavelmente respondia que sim.
O anúncio que abre esta crónica, debitado pela minha avó, era para que eu me preparasse para a acompanhar à igreja de S. Pedro, no Toural, e aí participar na diária cerimónia do mês de Maria, consistente na reza do Terço, constituído – faço a descrição porque pode haver quem não saiba – por cinco séries de dez Ave Marias, chamadas Mistérios, intervaladas com duas outras orações, Glória e Pai Nosso, terminando com a Salve Rainha e mais três Ave Marias. Na sua versão completa, que era a do mês de Maria na igreja de S. Pedro, cada mistério era antecedido por uma Contemplação, por exemplo: “Primeiro Mistério: contemplemos…”, e seguia-se a Contemplação, sendo esta una na exortação, mas plúrima no que se contemplava, pois diferente para cada Mistério. Terminadas todas as orações do Terço, proferia-se, finalmente, uma extensa ladainha dedicada à Senhora de Fátima, quase toda ela constituída pela enunciação dos Seus excelsos e exclusivos atributos.
Importante: para assinalar a última Ave Maria de cada Mistério, avisando os fiéis que se seguiria o ritual do Mistério seguinte, o ajudante da cerimónia tocava uma campainha de quatro campânulas e som agudo, seguindo-se o arranque de um órgão que acompanhava os fieis no canto do hino em louvor da Senhora de Fátima, popularmente conhecido por “A Treze de Maio”, melodia que hora a hora é ainda hoje entoada pelo carrilhão da igreja de S. Pedro, se bem que só a sua primeira parte, e em prestações debitadas a cada quarto de hora, frequentemente com falha de algumas notas.
Nos raros dias em que chuva intensa desaconselhava a ida à igreja, o Terço rezava-se em casa, o que, aliás, acontecia quase diariamente ao longo do ano, de tal modo que a aprendizagem do Terço por mim foi concomitante com a da fala. Mas o terço que se rezava em casa era na sua versão básica, ou seja, sem Contemplações e sem a Ladainha, o que me convenceu de que nem a minha avó nem as tias sabiam contemplar, nem a memória lhes albergava a Ladainha.
O Terço doméstico era rezado por apenas quatro criaturas: três senhoras, avó e duas tias, e eu.
Diz-se que as mulheres conseguem fazer mais do que uma coisa ao mesmo tempo e posso testemunhar que, no caso, a minha avó cumulava o terço com o croché, jamais se enganando em que Ave Maria íamos nem em que quadrado do mapa do crochet estava, e as tias conjugavam irrepreensivelmente a reza com o perfeito manejo das agulhas com que confecionavam malha.
Eu, porque não era mulher, só rezava, até porque qualquer tentativa de movimento que não fosse coçar a cabeça ou explorar o ouvido, ou o nariz, era-me assinalado com um daqueles atos a que atualmente se chama de ofensa corporal e, quando praticados no recato do domicílio comum, violência doméstica.
Mas na altura os atos em causa – “poucas, boas e dadas a tempo”, lema da tia mais nova, eram de ministração de respeito e fonte de boa educação, donde a conclusão, sábia e rapidamente tirada perante qualquer criança ou adolescente em ato menos educado, de que o mal radicava na falta de uns bons pares de bofetadas. No mínimo!
Ora, um dia do ano anterior ao do maio específico de que vou falar, o saudoso Sr Guise, a quem se deve a existência da última banda de música que houve em Guimarães, a Banda dos Guises, e que foi na nossa terra o primeiro distribuidor de gás Cidla, logo nos alvores da passagem da lenha para os gás como combustível para confeção das refeições, ofereceu-me um mealheiro que era uma miniatura de uma botija de gás.
Em agosto do mesmo ano, em período de Festas Gualterianas, um casal que já não lembro quem fosse, foi visitar as minhas tias e, com a já falada mais nova, que me levou com ela, fomos dar uma volta pela zona das “barracas”; o dito casal ofereceu-me uma harmónica, instrumento mais conhecido por “gaita de beiços”, cuja técnica rapidamente apreendi de tal modo que no maio do ano seguinte já o dominava eximiamente.
Em certo dia desse maio, com um fim de tarde fortemente pluvioso, o Terço foi rezado em casa.
Passou-me pela cabeça que seria apreciado que eu aproximasse o mais possível o Terço caseiro daquele que se praticava na igreja, e, mais que isso, que o fizesse de surpresa.
O local em que o Terço era rezado era à volta de uma mesa redonda, de camilha até ao chão, sob a qual se metiam as pernas e onde eu disfarçadamente introduzi os apetrechos de que me fiz portador: o mealheiro e a gaita.
Iniciada a reza, tive o cuidado de contar rigorosamente as Ave Marias do primeiro Mistério e, chegado à “hora da nossa morte” da última delas, rapo do mealheiro e abano-o fazendo tilintar, tipo campainha, as poucas moedas que guardava, o que fez com que o oração ficasse repentinamente em suspenso, um silêncio condizente com a evocada “hora da morte”, as senhoras fitando-me intensamente surpreendidas e, perante o silêncio e imobilidade que se fizeram, que eu tomei por aquiescência, eis-me a avançar, soprando de olhos, só os olhos, voltados para o alto, a gaita de beiços entoando, impecável e solenemente, o “Treze de Maio”.
O que se seguiu foi muito engraçado.
A avó manteve-se de boca aberta, porventura porque dada a idade tinha mais dificuldade em sair do espanto, e as tias largaram, felizmente, as agulhas da malha, para num ápice me premiarem com os vários tipos de atos educativos: primeiro, céleres, surpreendentes e de rajada, vieram umas chapadas, das quais me defendi baixando a cabeça contra a mesa e protegendo-a com as mãos, ao que, por ter deixado o pescoço apetecivelmente a descoberto, se seguiu uma salva de enérgicos cachaços, o que me obrigou a rápida e cobarde retirada que, mesmo assim, não evitou uma bengalada desferida pela tia mais velha, arma que, por ter sofrido de poliomielite usava desde criança e, por isso, qual espada de mosqueteiro, manejava com a máxima maestria.
Refugiei-me a choramingar no meu quarto, suficientemente baixo para ter conseguido ouvir as minhas educadoras a rirem-se discretamente enquanto comentavam – O raça do rapaz teve graça!
Curiosamente no Liceu, onde gastava os meus doze ou treze anos, por ser maio foi-nos prescrita redação subordinada ao tema “A Primavera”.
Inspirado, e em jeito de exorcismo, a minha começou assim: “O mês de maio é cheio de beleza, alegria e devoção!, e terminou com “Seja em que mês for, eu hei de sempre gostar muito do mês de maio”.
Guimarães, 14 de maio de 2019
António Mota-Prego
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