Se o pensamento é livre...
“Je suis comme je suis “Je suis faite comme ça” (Prévert, Paroles)
Então e desta vez ... ficcionemos. Como se discorre como a explicação mais plausível para os dias de hoje, o Universo, todo ele e nós nele incluídos, advimos de uma inimaginável implosão inicial: o assinalado Big Bang. Do caldo inicial ainda não concretamente definido e do que se lhe seguiu (das partículas às energias e forças; e quaisquer que sejam as suas naturezas intrínsecas) proveio tudo o que hoje existe. E do impulso dessa tremenda deflagração seguiu-se uma expansão que ainda se mantém, bem como e o que é mais relevante para o que vai prosseguir, uma dinâmica microcósmica evolutiva que, das partículas aos átomos, destes aos elementos, às moléculas, às células e por aí adiante, no particular da galáxia, sistema solar e planeta em que somos, deram origem à espécie animal homo sapiens, de que somos a emergência do momento.
É essa dinâmica evolutiva que, ao longo de milhares de milhões de anos de progressiva complexidade orgânica (numa sequencialidade consequente que intentou as inumeráveis probabilidades de diversidade que se foram apresentando e conquanto viáveis), deu origem à Terra, nosso solar e a tudo o que nela esteve, está e poderá vir a estar. Enquanto esta estiver, ... é claro!
Um resumo tão, tão, condensado, na extrema densidade de conhecimentos e conceitos que envolve, pode parecer indecifrável para muitos, mas, creia-se ou não, constitui uma visão actual sintetizada ao máximo do que é o mundo; do que a ciência adquirida nos admite a reconhecer dele e, claro, de nós mesmo e das origens.
Ora e nesse contexto, a invocada dinâmica apresenta uma propriedade que se acredita generalizada e que, grosso modo, pode traduzir-se por a ideia corrente de processo, de processar. Isto é, qualquer individualização material massiva concebível, concreta, desenvolve-se entre um seu início e um seu termo (porque nelas não há absolutos, mas apenas relatividades). Criando assim uma constante que podemos identificar como a vida (mesmo um átomo a tem, como cada própria partícula e uma vez que ainda não se descortinou o tijolo irredutível que será a essência das poucas que se julgam primárias). Ora esta dinâmica, a vida, pressupõe a ideia de decurso: bem como impõe as abstracções tempo e num crescendo em razão directa da dimensão, da complexidade do conjunto, espaço. Mas isso são outras guerras que se abandonam por carecidas de interesse para o que se pretende ficcionar.
Voltando, por conseguinte, à singularidade de decursos materiais tout court, à vida, repetir-se-á que ela acontece entre um surgimento e um desaparecimento, entre o nascimento e a morte desse singular; ou e melhor, dessa individualização tida em si como tal por percepção descontinuada de um seu contexto mais global e do todo universal. E, insiste-se, essa vida verifica-se em todos os fenómenos decorrentes da realidade. A ponto de se a poder identificar com existência. Assim, tudo que existe é e tem nesse sentido vida. E, portanto, está entre um início e um fim.
Aqui chegados uma pequena circunvolução. Há anos atrás, quando se lia e por a leitura ser então uma também forma maior de distracção, a ficção científica era um género de literatura que tinha muitos leitores, alguma qualidade e diversas publicações regulares, como a mensal Argonauta. Nas várias centenas de títulos que essa colecção editou, em muitos deles, a guerra pela supremacia entre os humanos e máquinas inteligentes foi fantasiada; mas, sempre, no final, com a vitória dos primeiros. O tempo passou, décadas ficaram para trás e muito do que então era mera fantasia foi-se transformando em reificação, com avanços que, mesmo para esses tempos não tão recuados assim, nem sequer seriam conjecturáveis. A tal ponto que alertas (como o de Martin Rees, reputado cientista britânico ou do, mais noutro campo, também químico Robert Watson) vão aparecendo aqui e ali. Mas deixemos esta referência literária já servida por Júlio Verne no século XIX, com miragens que assombraram gerações e hoje estão de há muito ultrapassadas. Retornemos, pois, à vida na concepção que enunciamos.
À sua sempre efemeridade.
À do processo em si de cada singularidade; e neste fixemo-nos no da espécie humana, que, sendo-o, como todos os restantes e no seu vetusto desenvolvimento evolutivo geracional, teve um início e, por conseguinte, terá de ter um termo; ainda que de incerto quando.
Chegados a este ponto duma oração de presumida lógica, assentes nele, levantemos então voo para a ficção.
Como se pode observar, no presente, as máquinas, ou seja, os dispositivos, ou e melhor ainda, os instrumentos, estão presentes em todo o quotidiano humano e são eles quem potencia a nossa vivência; desde as mais comezinhas tarefas até ao conhecimento e investigação de ponta. São elas quem intensifica os nossos sentidos (muito para além das suas aptidões funcionais) e, inclusivamente, já são superiores a capacidades mentais (memória, cálculo, etc.). Ora, quando se começa a falar, criar e progredir no avanço da inteligência artificial, o limite dessa produção pode situar-se na sua autosuficiência (de instrumentos para executar funções a aparelhos raciocinantes, i. e., instrumentos já capacitados para pensarem). E depois? Quais as consequências dessa transformação? É que a linear estória da supremacia humana não resiste a uma análise mais profunda sobre elas; até pelas muitas restrições anatómicas do corpo humano perante aparelhos raciocinadores que poderão não as ter. E o mais certo até é que as não tenham, ou que as poderão ir debelando.
Nesta perspectiva o que virá a acontecer à raça humana? Sem pessimismos à velho do Restelo (e será que não teria razão?) , mas também sem os optimismos de Luciano de Samósata, Goethe e quejandos tantos que propugnaram a crença de sermos um remate na dinâmica evolutiva terrestre (que é o que é e não o que se gostaria que fosse), o que ocorre pôr em cima da mesa, equacionar, é se não nos estaremos a aproximar dos nossos estertores e a presenciar a génese de pós-humanos?
Fundevila, 22 de Maio de 2019