Sociedade Martins Sarmento assinala comemoração do nascimento de Raul Brandão
A Sociedade Martins Sarmento assinala mais um aniversário de nascimento do escritor da Casa do Alto, revisitando o II volume das «Memórias» de Raul Brandão, publicado pelo escritor em 1925, através de um excerto do texto «O silêncio e o lume», dedicado à sua mulher, Maria Angelina Brandão:
“A certa altura da vida tive a impressão de que me despenhara num mundo de espectros. A face humana meteu-me medo pelo que nela descobria de repulsivo e grotesco. Fugi para poder viver; tudo me soava falso e me parecia inútil. Paz e uma árvore. Vamos, disse-te, ser como aqueles náufragos de jangada, que vi numa estampa, agarrados um ao outro, entre o mar encapelado. Estamos nas mãos de uma coisa desconforme e frenética que nos dá a ilusão e a morte. Deixemo-nos levar, que isto dura pouco. E daí não sei… Muitas vezes tenho perguntado se seríamos mais felizes noutra existência calma. Supõe a eternidade imutável no céu imutável, e talvez tivéssemos saudade da dor…
Mas tudo isto no fundo, bem no fundo, era egoísmo. Não compreendia a vida. À própria natureza preferia um cenário. E o que eu não queria era ver a outra coisa enorme – a outra coisa esplêndida que é a Vida. O que eu não queria era ver…
Fugimos para a aldeia…A nossa casa fica a meia encosta da colina. Por trás o mar verde dos pinheiros, em frente os montes solitários. Este cantinho rústico criei-o eu palmo a palmo. Tudo isto foi pedra e uma árvore contemporânea da fundação da monarquia. O carvalho centenário cobria todo o eido. Era enorme, era prodigioso. No tronco, que nem seis homens podiam abranger, tinham os bichos as luras e seu hálito sentia-se ao longe. Logo que o vi fiquei apaixonado. – Vamos viver juntos, vou envelhecer ao pé de ti. – Nós não ouvíamos as árvores, mas a sua alma comunica sempre connosco: sua força benigna toca-nos e penetra-nos…
Construí a casa, plantei as árvores, minei as águas. Absorvi-me. Uma pedra basta, basta-me um tronco carcomido…Este tipo esgalgado e seco, já ruço, que dorme nas eiras ou sonha acordado pelos caminhos, sou eu. Sou eu que gesticulo e falo alto sozinho, envolto na nuvem que me envolve e impregna. Que força me guia e impele até à morte?”
Tenho apanhado sol em todas as eiras. Nunca me farto de ver as grandes pedras veneráveis, nem de falar com jornaleiros, cavadores e pedreiros, que não ganham para comer (…) Refiro-me principalmente aos pedreiros – geração formidável que há séculos vem rachando a alvenaria para edificar a casa, erguer os socalcos e lajear as eiras. São homens só ossatura e pele, que na mesma cantilena – ou pedra – ou – oupa – lá – têm erguido as cabanas de todos estes arredores. É o Tordo, o Carvalhoa, o Bernardino, quase todos da mesma família, alguns velhos de poucas falas, e os filhos, que vão sucedendo aos pais no mesmo mester de cortar a laje e a afeiçoar a pico e cinzel, sempre cantando e trabalhando – ou pedra – ou – oupa – lá – para no fim da vida acabarem de fome.
O que aqui conserva um caráter eterno são as árvores, os montes e o trabalho no campo e nas eiras, que à força de ser transmitido – sempre os mesmos gestos – adquiriu uma beleza extraordinária, entranhada até ao âmago nos vivos e nos mortos.”
Marcações: Raul Brandão