ENTREVISTA a PEDRO CUNHA sobre nova ULSAA: «Há necessidade de detalhar ainda mais o perfil dos pacientes que temos»

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Desde o início deste mês, Pedro Cunha lidera o Conselho de Administração da Unidade Local de Saúde do Alto Ave (ULSAA). Em entrevista concedida ao jornal O Comércio de Guimarães, publicada na edição do dia 10 de janeiro, médico especialista em medicina interna apresenta este novo modelo que integra os cuidados de saúde primários e os cuidados de saúde hospitalares, numa reorganização estratégica focada no utente.

O Comércio de Guimarães - O que o levou a assumir funções de gestão da ULSAA num tempo em que se assiste a uma quase 'revolução' nos cuidados de saúde?
Pedro Cunha - É um tempo desafiante e de exigência. No meu percurso, se me tentar lembrar de quando é que não foi assim, de quando é que não houve dificuldades a ultrapassar nos cuidados de saúde, chego à conclusão de que não há uma resposta clara. Sempre tivemos de trabalhar para conquistar e manter aquilo que temos e agora há a oportunidade de ampliar aquilo que já conseguimos numa perspectiva de futuro! A ULS é mais um desafio que nos é colocado num modelo de organização que integra os cuidados de saúde hospitalares e os cuidados de saúde primários e que nos permitirá concretizar algumas das perspectivas que tínhamos de poder oferecer ao doente não só o acesso à saúde, mas também a garantia do acesso aos cuidados de saúde com uma integração total daquilo que é o seu percurso desde que contacta os cuidados de saúde primários, até que precisa de uma atenção nos cuidados de saúde hospitalares. Entendemos que podemos fazer parte da solução. Por isso, aceitamos o convite do Professor Fernando Araújo, podendo integrar o Conselho de Administração com uma equipa que está em formação e que, se espera, acompanhe em absoluto a estratégia de fazer parte de um projecto que poderá ter um benefício claro e ganhos em saúde para a população.

CG - A ULS tem uma área territorial vasta, sendo o Hospital da Senhora da Oliveira a unidade hospitalar de referência. O facto de conhecer os serviços hospitalares muito bem representa uma mais-valia para a dinâmica que pretende incutir neste novo modelo de organização dos cuidados de saúde?

PC - Esta cooperação entre os cuidados de saúde primários e os cuidados de saúde hospitalares não começa com o decreto de criação da ULS. Há vários anos que tentamos estabelecer linhas de acção e de trabalho comuns, dentro daquilo que era permitido pelo quadro jurídico e legal em vigor. A criação da ULS, juntando dentro da mesma estrutura os cuidados de saúde primários e hospitalares, permite aprofundar esse trabalho, melhorando-o com todos os intervenientes para podermos concretizar novas ideias e projectos.

CG - O arranque da ULS acontece num período em que se verifica um pico na afluência aos serviços de saúde, num momento crítico associado ao aumento da procura devido às infecções respiratórias. Este pico tem tido repercussões na urgência do Hospital e na procura dos centros de saúde?
PC - Nestes primeiros dias, conseguimos demonstrar a articulação que se pode implementar através de uma ULS para conseguirmos ter uma acção integrada na resolução de um problema deste tipo. Passamos por um tempo em que as infecções respiratórias de causa viral estão num pico cada vez mais crescente e de uma forma avassaladora com um número de casos muito significativo. Isto não acontece só em Guimarães e em Portugal. Acontece em Espanha, em Itália e em França. Há várias estruturas hospitalares em outros países que estão em colapso, sobrepujadas pela grande quantidade de infecções víricas e respiratórias que têm descompensado muitos doentes crónicos e há exemplos de hospitais em vários sítios da Europa que vivem circunstâncias, em alguns casos, piores do que as nossas. Não somos excepção a uma onda de infecções víricas que varre toda a Europa e somos penalizados aqui e no resto do País por causa disso.
Tem havido uma afluência acrescida aos serviços de urgência, o que impacta claramente a nossa capacidade de internamento e a lotação que existe no hospital. Porém, nas primeiras 72 horas de funcionamento da ULS conseguimos enfrentar a situação de uma forma articulada. Em primeiro lugar, com uma estratégia nos cuidados de saúde hospitalares que permitiu em menos de 24 horas resolvermos o congestionamento que existia na urgência depois da quadra festiva da Passagem de Ano, remetendo todos os pacientes que careciam de internamento para as suas respectivas unidades; em segundo lugar, de forma articulada com os cuidados de saúde primários, reforçamos a capacidade de atendimento para consultas abertas, aumentando a capacidade instalada no território de poder atender junto das populações aqueles que são os primeiros sintomas, os casos ligeiros a moderados, aqueles que carecem de observação e avaliação nos cuidados primários. É uma forma articulada de aumentar a oferta de assistência à população e, ao mesmo tempo, reduzir o impacto deste pico tão grande de gripe que varre a Europa, o nosso país e a nossa urgência.
Aproveito para fazer um apelo a todos: usem os cuidados de saúde de uma forma regrada, optando pelo recurso inicial à Linha de Saúde 24 (808 24 24 24) e daí seguirem a orientação, permitindo-nos estar focados nos casos que realmente precisam de atenção. Não queremos que as pessoas fiquem sem assistência! O que queremos é que aquelas pessoas que só podem ser tratadas no Hospital tenham a atenção e os cuidados devidos. Isso não pode ficar comprometido por situações que poderiam ser resolvidas com recursos e com a mesma qualidade nos cuidados de saúde primários.

CG - Nestes primeiros dias do ano, a urgência do Hospital esteve no limite da capacidade?
PC - Esteve sobrelotada. Houve um constrangimento por causa do aumento significativo da afluência e transitoriamente houve a necessidade de alocar mais pacientes enquanto aguardavam a passagem ao internamento. Tivemos a oportunidade de implantar um mecanismo de acção interno com uma equipa multidisciplinar constituída por enfermeiros, médicos, assistentes técnicos e assistentes operacionais, criada especificamente para o efeito na primeira reunião do Conselho de Administração, no dia 2 de Janeiro, e que pudemos colocar em funcionamento em 48 horas e que foi fundamental para que, em menos de 24 horas, pudéssemos resolver esse pico de afluência à custa de um esforço sobre humano dos profissionais de saúde do serviço de urgência.

"Esta é uma urgência que recebe com facilidade várias vezes num mês e, por vezes, numa semana mais do que 500 pacientes por dia".

CG - Estamos a falar de que número médio de pessoas foram atendidas por dia no serviço de urgência?
PC - Esta é uma urgência que recebe com facilidade várias vezes num mês e, por vezes, numa semana mais do que 500 pacientes por dia. Em muitos dias, andamos perto dos 600 doentes, o que para uma urgência desta dimensão é algo extraordinariamente elevado. Compreende-se assim o esforço que os nossos profissionais fazem para garantir que todas as pessoas sejam observadas e tenham a atenção que precisam e o tratamento de que carecem. Há um esforço abnegado dos profissionais de saúde! É também um desafio continuarmos a ter esta prestação de serviço aos doentes agudos, prestando atenção aos pacientes que tendo maior gravidade carecem de uma maior monitorização e de um acompanhamento de mais tempo no serviço de urgência e isso só se consegue à custa do trabalho importantíssimo dos profissionais do serviço de urgência que se têm comportado de uma forma exemplar.

CG - Nesta reorganização, o funcionamento dos centros de saúde ao fim-de-semana poderá conhecer alterações?
PC - Há estratégias que já estavam implementadas e que estamos a rever para poder perceber de que forma melhor poderemos alocar tempo e recursos à utilização dos cuidados de saúde primários neste domínio da gestão da doença aguda.
CG - Não se perspectiva a abertura de mais centros de saúde ao fim-de-semana?
PC - É um dos assuntos que estão a ser discutidos com os cuidados de saúde primários para avaliarmos as disponibilidades e existência de capacidade para o fazer sem comprometer outros aspectos importantes da actividade assistencial.

CG - O financiamento da ULS estará associado ao perfil dos utentes. Esse levantamento já está feito para o caso da ULSAA?
PC - Já tivemos uma primeira avaliação e apreciação das características da ULS quando preparamos o plano de negócios a pedido da Direcção Executiva do SNS. Nessa altura, valemo-nos de dados existentes quer nos cuidados de saúde primários, quer nos cuidados de saúde hospitalares, mas também naquele que é o conhecimento que os diferentes profissionais responsáveis por estas unidades têm das patologias mais prevalentes e das necessidades com que se confrontam no dia-a-dia. Isso foi valioso. O plano de negócios da ULS inclui um capítulo dedicado à governança clínica onde se incluem vários aspectos do trabalho, assim como as perspectivas de conhecimento e capacidade de diferenciação técnica dentro da ULS. Há necessidade de detalhar ainda mais o perfil dos pacientes que temos, não porque não os conheçamos da experiência do dia-a-dia, mas porque é preciso traduzir essa informação de uma forma correcta quando transpomos para o algoritmo que vai determinar o financiamento da ULS e que a Secretaria de Estado da Saúde vai implementar.
"Não há maneira de podermos dizer que este modelo é o melhor do mundo, como também não podemos dizer que é um modelo mau"

CG - A ULS é o modelo certo para a reorganização dos cuidados de saúde?
PC - É um modelo de reorganização do sector da saúde com uma liderança, envolvendo as pessoas com competência para abraçar este projecto da forma que nos parece mais apropriada para as populações. Não há maneira de podermos dizer que este modelo é o melhor do mundo, como também não podemos dizer que é um modelo mau. Há objectivos que nos parecem muito interessantes e com benefícios para os utentes, em resultado da integração dos cuidados de saúde.
Essas perspectivas são aplicadas de uma forma genérica, mas carecem de uma aplicação no terreno. Temos a opção de trabalhar para conseguirmos chegar àquilo que consideramos que deve ser o cuidado assistencial dos nossos utentes, aproveitando as ferramentas que este modelo encerra, transformando-o numa realidade que produza benefícios efectivos. Escolhemos este caminho e decidimos utilizar as ferramentas disponíveis para trazer mais-valias para o serviço que é prestado à população.

CG - Com este modelo, o Hospital deverá ser o fim de linha para o atendimento nos serviços de saúde, em resultado da proximidade e da acção dos cuidados primários?
PC - Os cuidados de saúde primários desempenham uma função crucial para a população e essa função de prevenção da doença, de promoção da saúde, de acompanhamento dos doentes crónicos, de estratégias de acompanhamento de pessoas com dificuldade de mobilidade... Desempenham uma miríade de funções fundamentais, nas quais se inclui um tempo dedicado à gestão da doença aguda. Não queremos que os profissionais de saúde dos cuidados primários deixem de fazer aquilo que fazem bem na gestão e no atendimento dos pacientes nesta miríade de funções para passarem a fazer só apenas e mais atendimentos nos cuidados da doença aguda.
É possível e é desejável que se melhorem as condições que os profissionais têm quando observam os pacientes nesse tempo dedicado à gestão da doença aguda, porque isso permite-lhes melhorar a sua eficácia e a sua capacidade de resolução de alguns problemas e dessa forma as pessoas escusam de procurar o apoio, com recursos para essa avaliação, disponíveis no Hospital.
Os cuidados de saúde hospitalares têm funções específicas de oferta, com um conjunto de serviços e de prestação de cuidados diferenciada em várias áreas e em algumas circunstâncias é o primeiro local a receber esses pacientes, conjugando-se e consertando-se depois a acção subsequente com os cuidados de saúde primários. O que é preciso é uma organização de quem faz o quê primeiro, quando e onde. É uma estratégia que nunca conseguimos definir totalmente antes da integração que este modelo da ULS nos dá a oportunidade de trabalhar.

"Brevemente, será inaugurado um centro de ensaios precoces"

CG - Uma das suas áreas de trabalho estava associada à investigação. A ULS poderá incrementar a atividade do Centro Académico na sua relação entre os cuidados primários e hospitalares?
PC - Esta ULS vai reforçar a sua função como Unidade-Escola, como Unidade de Ensino e como Unidade de Investigação. Já tive oportunidade de num evento da Associação para a Inovação Biomédica e Investigação Clínica anunciar que teremos a criação de uma unidade dentro do Centro Académico e de Formação dedicada exclusivamente aos cuidados de saúde primários, onde desenvolveremos e transportaremos todo o know-how que fomos adquirido com a criação do centro académico, colocando-o à disposição dos cuidados de saúde primários.
Agora é o Centro Académico da Unidade Local de Saúde. Brevemente, será inaugurado um centro de ensaios precoces que nos permitirá fazer investigação clínica nos estadios mais iniciais da formulação da hipótese de novas capacidades de tratamento e temos esse centro já instalado, já equipado e pronto para desenvolver a sua actividade. Passaremos a contar com outra área de trabalho de ensaios clínicos feita nos cuidados de saúde primários, com uma população que é diferente, na gravidade de apresentação das doenças, nas manifestações clínicas de espectro de acção. É uma oportunidade que iremos aproveitar e estender com os cuidados de saúde primários e com todos os promotores com quem trabalhamos, as 38 instituições de ensino público com quem temos parceria e que agora poderemos passar a partilhar em pleno com os cuidados de saúde primários.
O nosso mote é que quem investiga, quem está envolvido no ensino, adquire competências, actualiza-se constantemente, transpõe esses conhecimentos para a prática clínica e beneficia os utentes. O nosso objectivo é que esta Unidade-Escola, que funciona há mais de 20 anos e que agora tem um conjunto renovado de colegas que reforçam a nossa capacidade de oferta pedagógica e de investigação clínica, se possa transformar rapidamente numa unidade académica universitária que já o é na realidade e que, no papel, carece da assinatura.

CG - O reconhecimento do hospital como centro universitário é uma ambição?
PC - Há já o reconhecimento prático das 38 instituições de ensino que aqui colocam os seus alunos, mais de 1500 alunos por ano, renovados todos os anos e que mostram a qualidade e a excelência dos profissionais que temos para essa formação e ensino. Depois, há o reconhecimento formal pelas estruturas que o podem fazer e que penso que será um desafio que abraçaremos para demonstrar que somos merecedores dessa apreciação.

CG - A comunidade está sempre atenta e quer sempre mais dos cuidados de saúde. O que espera das diferentes instituições que estão no terreno e trabalham com os públicos das unidades de saúde?
PC - Parceria e colaboração, biunívoca. Nunca é demais salientar o respeito imenso por todas as instituições que trabalham na área da saúde, quer directamente, quer de uma forma associada, contribuindo para a resolução dos problemas não só clínicos, mas também sociais dos nossos utentes. Há um respeito claro pelas associações de pacientes e que podem ajudar na orientação e apoio a outros utentes! E a participação dos cidadãos também é fundamental para o estabelecimento das directrizes de actuação, o que já tem vindo a ser feito ao nível dos cuidados primários de saúde, nomeadamente com a elaboração do Plano Local de Saúde. Esperamos ter tempo e os primeiros três meses são para isso: são três meses para recolher informação, ter toda uma estratégia estabelecida não só dentro das nossas instituições, mas também nas instituições que nos circundam e poder definir com calma passos seguros e suportados de estratégias novas e diferenciadoras para a ULS.

Pedro Miguel Guimarães Marques da Cunha é Licenciado em Medicina pelo Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto, e Doutorado em Medicina Clínica pela Escola de Medicina da Universidade do Minho. Completou com Mérito o Programa de Alta Direção de Instituições de Saúde da AESE Business School. É Médico do Hospital Senhora da Oliveira onde exerceu várias funções, como a de Director Clínico, antes de assumir a liderança da ULSAA.
Foi Membro da Comissão de Acompanhamento da COVID19 do HSOG, onde coordenou os esforços clínicos e de organização com as Autoridades Locais e Regionais, Universidade e uma Rede de Instituições de Saúde que incluiu 12 hospitais e 3 unidades de convalescença. Entre 2020 e 2021 foi Coordenador da Unidade de AVC e Unidade de Cuidados Intermédios Médicos do Serviço de Medicina Interna.
A ULAA funciona desde o dia 1 de Janeiro e integra o Hospital da Senhora da Oliveira (onde está sediada) e os centros de saúde de Guimarães, Taipas, Vizela, Fafe, Cabeceiras, Mondim de Basto e Celorico de Basto, abrangendo um território com cerca de 270 mil pessoas.


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