Descaracterização

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Sem necessidade de se esclarecer o seu significado, no entanto e para o que se seguirá, convém adiantar que ele pode, e quere apenas, referir-se a conceitos

não integralmente
assumidos por uma sociedade, por não corresponderem à sua efectiva mentalidade social e que, ela, ainda a anterioriza com as práticas a que estava acostumada e que, por isso, com elas prossegue (de certa maneira, por inércia). Ou de forma menos rebuscada, trata-se do sempre não pôr o carro à frente dos bois. E isto porque a realidade é o que é e não se a pode moldar a repentinas inovações que a contrariem, por muito correctas que elas sejam, mas que levam o seu tempo, e processamento, a serem convenientemente assimiladas. Nesse caso e como a experiência o tem demonstrado à exaustão, como regra, a continuidade evolutiva sequencialmente consequente derrota quaisquer transitórias emergências dialéticas, favorecendo o retornar a um desenvolvimento análogo ao interrompido.


Feita esta essencial introdução, voltemo-nos para a lógica da sua oportunidade no exercício da nossa democracia.
Convém, ainda e previamente a essa apreciação, chamar a atenção para a diversidade de conjunturas que, elas e em si, na também sua concretização espaço temporal, provocam
dissemelhanças que diferenciam os efeitos. Ou seja, o que aconteceu nesta pode não sucedeu naquela, ou a sucessão nesta pode ser mais rápida, ou lenta, do que naquela (como Eça ironizava, denunciando, o nosso atraso). Sem prejuízo de similitudes que a proximidade cultural (lato sensu) pode ocasionar e que tendem a confluir na abrangência duma idêntica mentalidade.

Mais ainda cabe lobrigar, como igual introito a acrescer, o nosso processo histórico, para lhe revermos antecedentes e o seu desenrolar até cerca do presente. Digamos, fazer um como
que resumidíssimo ponto da situação desse passado. E sem nele se ir mais longe, fixemo-nos na sua estrutura patriarcal posterior à implementação da figura do “pater familias”. Esta e num contexto já de si permissivo, veio confirmar a supremacia do pai na célula social elementar, desigualando-o dos restantes membros da família. E como consequência multiplicadora, gerar um modelo que se estendeu aos sucessivos colectivos sociais, do clã à tribo, ao reino (como a seu tempo no feudo) e depois à nação. Estamos, nesses conjuntos, a referirmo-nos às chefias, quer no seu aspecto unipessoal, quer no das delegações. E nestas relações, sobretudo por a sua mais flagrante incidência e visibilidade, nas administrativas, militares e religiosas. Em quaisquer destas o poder era centrado, em graus hierárquicos atinentes à respectiva estrutura, em “patres”. E essas atribuições apareciam como perfeitamente naturais, por imanência duma autoridade que a família instituíra e, como causa real, pela exigência funcional organizativa do colectivo (para se obter uma articulação eficaz entre os seus elementos e assim se atingirem objectivos). Personalizações essas que originaram efeitos dos mais diversos, directos e indirectos, um dos quais se verifica na concentração no “pater” de feitos colectivos. Quem, numa racionalidade lógica, assaca a um jovem (Afonso Henriques) a criação de um país ou o vencimento duma batalha (Ourique?). Pense-se! E multipliquem-se essas imputações do passado ao presente. Aliás e do mesmo modo a nossa ditadura não era o seminarista de Santa Comba Dão e a corte que o cercava, mas igualmente as estruturas da administração pública que serviam, os torcionários, as polícias, a legião e uma parte da população que o apoiava, participava ou simplesmente convivia com o regime.
Esta mitificação das chefias na pessoa dos chefes (“patres”) foi, portanto, uma constante que se cristalizou ao longo dos séculos, deformando a realidade e consubstanciando uma visão acrítica, e minimizadora, da nossa sociedade (e não só). E sem descurar a necessidade das chefias, a desses “patres” colide com a mais elementar noção de democracia que, como o seu primeiro étimo refere, remete para todos os de um conjunto (o povo).
Acontece, portanto, que essa prática de personalização das chefias e da atribuição a essas pessoas dos factos históricos durante milénios, fossilizou-se na nossa sociedade e mesmo o eclodir da democracia não a conseguiu ostracizar. Mais, quando nesta se tentam implementar colectivos, criados eles, as mais das vezes, de recuo em recuo, vão-se sucedendo retrocessos de maior ou menor intensidade; agravados ainda pela idiossincrasia do imputado “pater”. Situação similar que, curiosamente e com particularidades próprias, foi um travão ao desenvolvimento e sucessivo engrandecimento de empresas privadas, constituindo uma pecha que as encerrou e feriu durante muito tempo.

Dando por concluído este genérico de considerações, voltemo-nos, então, para a organização da nossa democracia. E como é por demais sabido e um pouco como corre mundo, nas
democracias representativas, os órgãos da administração pública podem ser funcionalmente deliberativos, consultivos e executivos; bem como, pela necessidade de proximidade e, assim, uma maior e real legitimidade, centrais e locais. E como o espaço não dá para mais, vamo-nos deter no município, por o ser o de nível mais descentralizado com atribuições e competências significativas que, por força delas, tem real intervenção sobre o seu território. Sendo que, actualmente, os seus órgãos são a Assembleia e a Câmara. E ambos colegiais; com os seus membros eleitos proporcionalmente, segundo o método de Hondt e de acordo com as diferentes sensibilidades políticas que a eles concorram.
Enunciado este princípio básico, lembre-se que a primeira lei sobre as autarquias após o 25 de Abril, ao estatuir tal como de atrás decorre, não conferia ao presidente poderes significativos, ficando-se quase por aqueles os que são naturais nessas funções: o de representar, de coordenar e voto de qualidade. O que seria normal num “colégio executivo” integrando membros de várias concepções políticas; ainda que, como é facilmente dedutível, na grande maioria dos casos, essa diversidade não fosse motivo de dissensão, por apenas ser necessário bom senso para elas. Lembre-se que, pela proximidade das questões, o que maioritariamente se decide são problemas pontuais de concretização. E, sempre, que o orgão deliberativo é a Assembleia (será? ... abaixo se verá).

Estatuição que, então, ia a favor da recente institucionalização da democracia, impondo-a dentro dos mais dilatados limites que a representativa admite. Mas que ia contra a já ancestral costumagem da personalização (reforçada pelo Código Administrativo da ditadura com o orgão presidente e um substituto nomeados centralmente, acolitado por 6 a 3 subalternos vereadores) e, enfim, os maneios conservadores (que cedo mancaram essa implementação democrática com um crescente cercear da colegialidade e, noutro quadrante, com a transformação e limbo a que votaram as iniciais regiões plano). E destarte os poderes do presidente foram engordando, restringiu-se a participação igual dos eleitos com a atribuição de tempos e o mais que se lhe seguiu. De tal maneira que, em pouco tempo, a personalização estava outra vez implantada. E a Câmara ou o “nós” passou a segundas núpcias e surgiu o constante “eu”. Discurso singular que, repare-se, almejou tais foros que, inclusivamente, já aparece, nas propostas das candidaturas ao orgão, como próprias do cabeça de lista. E o orgão colegial, a Câmara, empiricamente, foi substituída por um outro orgão inexistente, o presidente. Situação ainda agravada quando se verificam maiorias, pois os elementos que não as integrem são, as mais das vezes, menorizados contra o espírito da lei, como se o pode depreender da manutenção do já referido método de Hondt (um retrocesso, portanto, à “outra senhora”, em que os vereadores eram “fogo de vista”.

Finalmente, extinto o Conselho Municipal, quedou a Assembleia e esta, por razão da lógica eleitoral e também, e talvez sobretudo, por não se a haver apetrechado com serviços próprios eficientes e capazes (por si e com assessorias) para estudar, planear, desenvolver projectos e propor as posições dos eleitos, ou dos grupos destes, tem ficado remetida a uma dependência crescente da Câmara, transmudando-se num orgão quase só sancionatório e, eventualmente, palco verbal de críticas. Desta forma, esvaziada a sua função suprema, a deliberativa, esse primeiro orgão fica, e está, secundarizado.
E assim se vai mancando a democracia representativa!

Fundevila, 6 de Fevereiro de 2025


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