Da individualidade à anomia

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A transformação social que a sociedade europeia iniciou com a revolução industrial (com as disparidades espaciais e temporais verificadas por os seus distintos condicionalismos


evolutivos), foi sendo sequencialmente impulsionada por um progressivo aumento quantitativo da força do trabalho. Fenómeno que se acentuou na pós-industrial e, nesta, com efeito multiplicador, também por a constante, e crescente, divisão do trabalho. De entre as consequências físicas destes fenómenos, uma perfeitamente constatável é a da concentração urbana. Observações duas estas que dariam pano para mangas; o que, evidentemente, não cabe neste restrito espaço, pelo que nos limitamos à sua afirmação e a aproveitá-las no que se vai seguir.


Assim e em rápida ponderação, parece ser fácil depreender que, na sociedade pré-industrial, o comum da labuta na função produtiva perspectivava-se quase como um denominador generalizável; o que, portanto, irmanava a maior parte dos trabalhos e, com eles, os indivíduos. E mesmo na progressão que aí teve, a própria divisão do trabalho não se excluía do todo dessa comparticipação, o que, substancialmente, formatava a unidade do sistema. E como a força braçal era a mais requerida, a sustentabilidade das explorações impunha agregados humanos que as viabilizassem; bem como a sua perduração no mesmo espaço. Paralelamente e também por causa da referida sustentabilidade (necessidade de número e tempo), um núcleo estático era-lhe inerente, fosse ele restrito ou alargado (este último, permanente ou sazonal); impondo, no fundo, aquilo que se tem, no seu coração, como a família. Estrutura esta que, então, era a raiz e primeira promotora da coesão social.

Importa realçar, destacando-o mais uma vez, a primordial importância que a família desempenhou nas comunidades daqueles arcaicos e prolongados tempos, ao ser a fundacional
escola da vida partilhada e germe para todos os parâmetros formadores da já aludida coesão. E de, por isso, ser o alicerce de todos os sucessivos agrupamentos sociais que confluíram nas
actuais nações. Devendo aditar-se ainda a sua conotação com o espaço físico que ocupava e que, tão só como menção, reportaremos ao lar e de certa maneira ao solar (no sentido de
origem e, ainda, num ténue de pertença).

Feita esta lembrança, retornemos à divisão do trabalho. E aí essencialmente às especialidades. Estas e como é facilmente percetível, implicam um cada vez maior conhecimento (saberes)
e capacidades (técnicas) pormenorizados. Afastando-se, portanto, de níveis comuns, ou mesmo, destacando-se progressivamente deles e vindo a constituir-se em unidades
sucessivamente independentes e porventura, até, autónomas. A que há que acrescentar a intensidade de trabalho imposta pela lógica capitalista neoliberal da produtividade, que obriga a
ritmos e dedicações que, coadjuvados com os padrões urbanos da própria vida e o resultante modus vivendi gerado, condicionam aquele e, no seu conjunto com as especialidades,
encaminham-no para o isolamento individual (a que, recentemente e para um mesmo sentido, se veio juntar o teletrabalho). E mesmo os trabalhos menos especializados, teoricamente não tão subordinados a este efeito, por uma necessidade de conciliação e integração no contexto social em que se encontram inseridos, acabam por sujeitar-se às mesmas exigências e passam a sofrer as mesmas consequências. Acresce, ainda, um outro aspecto potenciador e não menos decisivo: a competitividade. Num tudo que origina uma sopa de pedra malsã que, não obstante práticas de cooperação e trabalho de equipa, no entanto, ou geram capelinhas ou simplesmente desagregam.


Regressando a bolinas do passado, uma que, aparentemente, parecerá despropositada, mas que se mostra importante para situar o campo de aplicação das anteriores afirmações e que nunca é por demais trazer à baila: a que concerne a uma particularidade da nossa, europeia, civilização. Particularidade essa que consiste na saída, nos inícios do século XV (conquista de Ceuta), do já então nosso ancestral solar, para uma ocupação territorial expansionista à escala mundial e que permaneceu activa até ao século passado; e cuja manutenção não ocupante, ainda e através de dependências de vária índole, se tenta fazer subsistir. Assim e como essencial para o que aqui cabe, o relembrar a diversidade de civilizações e culturas dispares que ocorriam por esse mundo fora e que essa ocupação foi destruindo, obrigando à subordinação, aceitação e assimilação da nossa. Nossa que, pelos nossos critérios, considerávamos muito superior; senão até a única desejável, ou mesmo a só admissível. Isto no total desprezo por cada uma daquelas, ou do que esses povos queriam ou a que aspiravam. E tudo porque a nossa era o supra-sumo que cabia adoptar, sem reservas ou obstáculos. Ignorando, assim, as singularidades de cada uma daquelas, a sua evolução e, dentro desta, o seu provir. Como nota e por extravasar esta explanação, mas na imprescindibilidade da sua constante recordação, deixam-se de lado todos os latrocínios, atrocidades, esbulhos e demais abusos que ao longo de séculos se cometeram (e vão cometendo, beneficiando ou anuindo). E para concluir este bordo, desaguamos na globalização que, pelo atractivo que as sociedades com os modos de produção mais desenvolvidos, as ditas ricas, podem oferecer a cidadãos seus (bem-estar, níveis de consumo, etc.) e exibirem, assim, a imagem dum estar sumamente apetecível e a que qualquer ser humano aspirará, colocámos os dela excluídos, como na fábula da cenoura à frente do burro, a salivar, a tentar alcança-lo ou, quando não e na impossibilidade dessa obtenção, a mimetizarem-no na sua realidade. Mas foi, portanto, a persistência dessas especificidades, por muito esbatidas que se mostrem, que compeliu a este parágrafo, na medida em que elas impedem generalizações, inadmissíveis no que não é igual.

Dada esta volta sinuosa, insuficiente, imperfeita e quiçá desacertada, voltemos à nossa civilização. E nela ao fenómeno urbano, já que, como acima se afiançou, se o individualismo também decorre da divisão do trabalho (mormente de especialidades que nascem como tortulhos), ele é igualmente agravado pela cultura urbana, tal como ela se materializa no presente (recentemente potenciada por estes novos tempos digitais). Assim, ambos e conjuntamente, contribuem decisivamente para uma crescente insularidade singular.
Circunstância última esta que está constantemente a ser opinada por vários observadores (livros, ensaios, estudos e artigos em crescendo), que alertam para causas que a provocam e os malefícios decorrentes, pelo que é despiciendo um mais detalhado especular sobre esse facto. No entanto, sempre se adiantará que a desagregação se adensou com o crescimento das áreas urbanas, que impõe condições físicas a um quotidiano que, da mobilidade necessária, às características da habitação e acabando nas extenuantes exigências do viver diário, constituem uma camisa de forças que manieta a disposição convivial. E gera uma fadiga que os tempos livres e, ou, as férias, apenas concedem um rápido carregar das pilhas, para um inevitável retorno ao mesmo. E com isso foram-se os hodiernos e permanentes convívios das refeições, dos serões e talvez até dos fins de semana familiares (estes fechados ou alargados a parentes e amigos), que fortaleciam e engendravam laços comunitários de identidade e pertença. Fora deles, ou na sua diminuição, encontra-se cada qual mais isolado, ensimesmado e à deriva por espectáculos de massas (desportivos ou ditos de arte, em que pode expandir unilateralmente as suas frustrações), ou navegando na net e nas redes sociais. E assim se vai perdendo o sentido de comunidade, do colectivo.

Perda que, quanto mais se acentua, mais engorda os direitos individuais. Estes, em franco progresso no que vai de tempo, exacerbados ao máximo e numa afirmação que pressiona, encolhe e quase oblitera os colectivos que, afrontados por diferentes lados, parece passarem a segundo plano. Não obstante e como se compreenderá, os padrões estabelecidos de conduta social não poderem se reduzidos ao individual (pois é este que tem que estar subordinado àqueles e não o inverso), face à sua essência civilizacional universalista. E qualquer
tentativa de se os pretender reduzir, ou desrespeitar, produz resultados contraproducentes (cifra, por exemplo, as teorias realistas do conflito), remetendo-nos para situações de anomia.
Anomia que, ao que se está presenciando, está aí com toda a força e não só nas sociedades, mas que, também, já parece atingir as próprias relações internacionais.

Fundevila, 30 de Outubro de 2024


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