O sono

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Sempre tive incapacidade para dormir muito. Mesmo enquanto jovem e adolescente penei, várias vezes, pela ausência dos meus amigos que dormiam refastelados horas

infindas sem que eu lhes pusesse a vista em cima. Eles batiam recordes atrás de recordes e alguns deles, quais vampiros, tinham em determinados períodos da sua vida alguma dificuldade em ver a luz do sol, tal a intensidade religiosa de como praticavam a arte do sono.
Em boa verdade, sempre achei que dormir era uma espécie de perda de tempo. Havia sempre coisas que nos escapavam enquanto dormíamos. E já que dormir era “meio sustento”, eu tive sempre que me sustentar da maneira tradicional, que era comer. Nisso sempre fui muito tradicionalista.

Na verdade, sempre tive algum preconceito por quem dormia demais. Talvez fosse inveja, ou simplesmente um daqueles preconceitos que nos invadem sem sabermos porquê, mas metia-me alguma impressão que os que dormiam menos tivessem sempre de explicar aos outros o que se havia passado naquele dia, pois eles perdiam sempre qualquer coisa. Cada dia, para os dorminhocos, era sempre de uma novidade estonteante. E os acordados como eu lá tinham que proceder à contabilidade do dia glorioso que eles haviam, entretanto, perdido. O que, a certo ponto, começava já a chatear pois dava aquela ideia de que estávamos a fazer dois exames ao mesmo tempo: o nosso, já devidamente entendido e respondido, e o deles, uma espécie de gatafunho rápido e entregue quando o professor saía já pela porta fora. Extenuante. Hoje em dia fala-se, e bem, creio, da importância do sono. Do efeito reparador que ele exerce em cada um de nós, da saúde que fica comprometida se dormirmos pouco. De repente percebi que aquilo que eu julgara ser em mim uma bênção era, afinal, um enorme e comprometedor defeito do meu sistema biológico. Uma maçada. O facto de, apesar de me deitar tarde, conseguir ver a manhã e fazer muita coisa enquanto os outros dormem não é afinal um benefício, mas uma falha. Mesmo o facto, tranquilizador, do Presidente da República pertencer ao clube VIP dos que dormem muito pouco, não é capaz de me apaziguar alguma angústia pelo sono ter alguns problemas comigo. Com Marcelo tem mais - não me comparo a ele, diga-se, ele é a nata da nata dos que não dormem – mas
ainda assim.

Para mal dos meus pecados quando eu ia tratar de melhorar o meu canal auditivo, que se entope a cada mergulho na água, descobriram que eu tinha apneia do sono. Isto de ir aos médicos dá sempre mau resultado. A gente vai ver uma coisa e sai com outra muito pior. É como quando vamos comprar umas calças e saímos da loja com roupa para a época Outono-Inverno, desse ano ... e do outro. Mas enfim, que dizer, quando eles utilizam palavras com mais de doze sílabas e nós temos que ficar com aquele ar de que sabemos o que eles estão a dizer e, rezamos, igualmente, para que eles o saibam.

O meu sono passou agora a ser uma coisa mais mecânica do que biológica, pois tenho uma máquina que se liga ao meu nariz. Não parece ter melhorado muito em termos de duração, mas passou, espero, a ser mais eficaz. Ainda não consegui adaptar-me à máquina, pois fico com a deprimente sensação, de cada vez que me deito, de que vou entrar numa unidade de cuidados intensivos. O que não é propriamente muito excitante. Mas tem de ser. 

Ainda assim prezo o meu sono. Ele vem sempre, não me falha nunca. Nunca precisei de pastilhas para o chamar, para o obrigar a ser sono. 

O problema do meu sono é a sua intensa rebeldia. Gosta de aparecer quando é necessário, mas desaparece quando menos se espera, poupando-me aos sustos de um qualquer despertador que se esganiça. Isto porque, creio, o meu sono tem mais do que fazer do que apegar-se a mim. É livre e tem as suas próprias ideias. Há que respeitar.


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