“... fora da fraternidade não há futuro.” (Frei Bento Domingues, O.P., Público, 24.12.23)
Prosseguindo na citação que vai como título, seguir-se-á que: “As guerras são todas fraticidas e são deicidas, sejam elas contra quem forem”. E continuando-a:
“Como escreveu Leonardo Boff, a lei suprema do Universo, que permitiu que todos chegássemos até aqui, é da cooperação de todos com todos. É a solidariedade cósmica, porque tudo tem a ver com tudo, em todos os lugares, em todos os momentos, em todas as circunstâncias (3). É preciso ajudar a fazer o Natal desse mundo. Mundo feito por todas as pessoas de boa vontade.”, para culminar com “Façamos do mundo uma festa, festa de Natal.”.
Finda, pois, a quadra natalícia, a mensagem implícita no citado impõe, neste presente de aparentes incongruências, uma reflexão não só sobre as muitas guerras em curso e sempre, portanto, injustificáveis, mas também sobre o sentido das condutas sociais suas permissivas e da alternativa que deveria ser imprimida a estas.
Quanto à belicidade dos tempos em que estamos, convém rememorar que, sendo o homem um animal gregário evolutivo, com capacidades carnívoras e desde sempre sujeito a várias exigências de competitividade (por imperiosidade de sobrevivência primária ou relativa; quer individual, quer e no que aqui concerne, também grupal), está-lhe, assim e pois, na massa do sangue a agressividade. Para testemunho disso, com alguma proximidade temporal e sem se recuar mais na História, para a nossa cultura europeia de remoto alicerce judaico-cristã, basta atentar nas descrições da História Deuteronomística (p.ex.: livros de Josué ou dos Reinados), para logo nos apercebermos o caminho desde aí percorrido até à cultura permissora da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Remate, esta, dum percurso a que comummente nos referimos como a nossa civilização; aquilo que nos distingue de outras primitivas, menos elaboradas ou diversas. São assim esses resquícios da agressividade que ainda encontramos bem vivos nos animais selvagens, os que explicam e fundamentam o militarismo que, um pouco por todo o lado, está enraizado nas sociedades mais desenvolvidas, sobremodo nas ditas ocidentais e que, no entanto, se querem pioneiras na assunção, e defesa, dos direitos humanos consagrados na acima invocada Declaração Universal (p.ex.: “Artigo 1 Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Eles são dotados de razão e de consciência e devem agir uns em relação aos outros num espírito de fraternidade.” e “Artigo 3 Todo o indivíduo tem o direito à vida, à liberdade e à segurança da sua pessoa.”). Sempre sem esquecer que o Que faz correr Sammy, o Plim do nosso João de Deus, é a dinâmica que, realmente, governa o mundo ocidental e possibilita, e fomenta, o complexo da indústria do armamento (e os poderosos lobbies que a impõem), sustentada por dotações orçamentais cuja grandeza, à escala mundial, dava para resolver, ou pelo menos mitigar em muito, a maior parte dos graves problemas que nos assolam. Assim e explorando instintos não completamente ultrapassados, ou medos subconscientes derivados de distorcidas noções de segurança, continua a endeusar-se Marte como necessidade inquestionável. Num vale tudo muito complexo que conduz às atrocidades como as que estamos vivendo e, maioritariamente, nas duas que nos tocam mais. Embora, num juízo humano e sendo essa a ocorrência, haja que distinguir entre agressores e agredidos, que, evidentemente, não podem ser colocados numa mesma valoração; não obstante e como acontece nos crimes de ofensas corporais, se o ofendido também agredir, igualmente comete crime. Crime em ambos estes casos de equivalente lesa-humanidade e em que o diferente nível de gravidade se aferirá pela dimensão da desproporção.
Chegados a este ponto e como parece resultar de um consenso generalizado, deve-se assinalar que a guerra, as guerras, nunca foram, ou são, a solução e apenas conseguem desaguar em atrozes desumanidades, destruições e porventura paragem, ou mesmo retrocesso, de sociedades a elas compelidas.
Então porque continuam a fazer-se?
Muito simplesmente pelo esvaziamento da implementação das noções de liberdade, igualdade e fraternidade; pela manutenção das desigualdades e consequentes privilégios.
Ora e como muito bem se sabe, com uma acepção que se pode irmanar com a contemporânea, essas noções têm dezenas de séculos na nossa cultura religiosa e, posteriormente, pela Revolução Francesa, entraram definitivamente no léxico dos direitos cívicos. Só que ... . Eh! Uma coisa são as palavras, outra bem diferente as práticas. E como sói palavrar-se, o poder corrompe e quem a ele se alcandorou custa-lhe abandoná-lo; tentando, outrossim e por todos os meios ao seu alcance, mantê-lo. Isto quer ao nível de blocos de nações, destas, das sociedades, dos grupos ou mesmo de pessoas.
Acresce que as ditas sociedades democráticas têm vindo a distanciar-se da proximidade entre representantes e representados. Como? Centralizando cada vez mais as decisões. Por um lado, pelo aumento da base eleitoral e de forma mais perniciosa, substancialmente, por a concentração de atribuições e competências no topo das administrações (p.ex.: o único órgão - instituição - elegível da EU, o Parlamento, é composto por 705 representantes de um universo de há volta de 400.000.000 eleitores; os Conselhos e a Comissão não são eleitos). Ora e como facilmente se pode deduzir, são esses representantes e os titulares dos poderes executivos quem, permanentemente, decide sobre as nossas vidas. Sem, entretanto, oportuna auscultação e apenas prosseguindo, subjectivamente, os critérios da sua conexão política, que não a vontade expressa dos que representam. Os quais, inclusivamente e as mais das vezes, só têm conhecimento da decisão quando ela os acomete. Ou seja, elegendo-os, e só, outorgam-lhes carta branca para exercerem o mandato. E por aí vai o poder do povo que se quer a essência da Democracia que temos . No que esta quase só a distingue, teoricamente, da ditadura, porque, em princípio e nela, os representantes e nos escalões em que são admitidos, são sufragados (quase sempre não escolhidos directamente pelos representados) em eleições que se querem livres. E são essas elites relativamente reduzidas (e assim de mais fácil corrupção) que se confundem com as privilegiadas do sistema, directamente ou através de lobbies, dando azo a decisões que, muitas vezes, não tem a mínima correspondência com o verdadeiro interesse da maioria dos eleitores, mas condizem com os dos privilegiados. Sempre sem esquecer a, por elas, elites, deliberada postergação da educação cívica, da aquisição de cultura humanística e do conhecimento em geral; o que agregado a uma desenfreada desinformação e intencionada manipulação, tende a não ensinar e desacreditar o saber político da realidade existente.
Neste e com este contexto, a sonhada “festa de Natal” é uma miragem que o poder instalado não admite; a que os privilegiados se recusam e os seus doutrinadores defendem com teorias de confrontação, desde as do “fim das ideologias” às “civilizacionais” e quejandas, que, todas, são o suporte de políticas tendentes à manutenção das desigualdades.
Só que o mundo rola. E na arrastante lentidão da evolução social, o dar o seu tempo ao próprio tempo, tem que se lhe diga e, por vezes, conduz a soluções de ruptura, que acabam por não se encaixar na linha dum desenvolvimento sequencialmente consequente; com posteriores dolorosos retrocessos.
Mas a perseverança, a paciência inquebrantável, atêm-se à alvorada. Àquela manhã em que o Sol, ao ir-se levantando, iluminará a operação de dar à luz essa ansiada, distinta e progressiva sociedade de efectivas trigémeas: a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade. Sendo certo que elas não germinarão senão com teimosia, árduo trabalho e algum constrangimento; pois este e como se sabe, no fim de longa gestação, o parto é tão menos doloroso quanto mais apta estiver a parturiente para ele e, assim, mais natural for.
Aprimoremo-nos, pois, em apressar a eclosão dessa “festa de Natal”.
Fundevila, 6 de Janeiro de 2024