Distraídos

images/opiniao/rui_vitor_2018.png
A preocupação de compreender os outros, de não os rotular e desprezar, é um ganho de civilização, e, em muitos casos, acompanha a nossa maturidade enquanto seres humanos

que conseguem dominar (com algum esforço) o seu egoísmo natural. Já no meu tempo de estudante do secundário havia algum cuidado para não magoar – pelo menos de forma vigorosa – os colegas. Nada que se compare com a desproporção dos dias de hoje quanto ao politicamente correto, mas havia um vislumbre dessa preocupação, em especial para com os amigos. Distraído era o eufemismo usado para não aplicar diretamente o adjetivo burro. O Euclides é um pouco distraído, coitado, a matemática resvala-lhe na distração.

Atualmente nem isso. Os burros desapareceram das escolas por magia das leis integrativas, e até os distraídos deixaram de o ser, pelo surpreendente efeito do despacho de sua excelência, o secretário de estado da coisa. Vivemos, por decreto, num país de génios e, quantas vezes, num país de sobredotados. A vulgaridade, a incompetência, a preguiça, já não existem mais. Seja a vulgaridade messiânica de uma Cristina Ferreira, ou a vulgaridade egocêntrica de um Cristiano Ronaldo, pois quem assim o acha é, simplesmente, um invejoso. E fim de conversa! O sucesso vai substituindo o valor da inteligência, já que a primeira é mensurável e a segunda meramente reflexiva.

No fundo, quando a maioria não se consegue concentrar em nada, a vulgaridade vence. Pensar dá trabalho, ver um filme que necessite mais de atenção do que de pipocas dá igualmente trabalho, ler dá trabalho, procurar perceber as ideias dos outros é extenuante. A vida em sociedade assemelha-se a uma aula caótica em que o professor – suponhamos Deus – não consegue captar a mínima atenção dos seus alunos. Passa-se de ano apenas porque não há condições logísticas de chumbar tanta gente. E erra-se constantemente porque não se aprendeu o que se deveria saber. É só olhar para as comissões parlamentares de inquérito. Ninguém leva a sua função a sério, pois estava distraído quando deveria ter estado atento. E o mais incrível e paradoxal é que a mentira que procura dissimular a falha do inquirido é que realmente dá trabalho: para se mentir bem é preciso ver todas as possibilidades de ser apanhado, todas as incongruências, todo o sentido das palavras que se dizem. Perdem-se seguramente dias e longas noites a preparar uma boa mentira, o aparelho de estado pára para se ensaiar a peça que deve ser debitada sem hesitações ou falhas. No fundo, o método é muito parecido com os alunos que gastavam mais horas a fazer cábulas, do que o tempo que seria necessário para aprender aquilo que as cábulas continham. Ou o empregado que trabalha imenso para não trabalhar, que passa apressado para sítio nenhum só para não servir a mesa que desespera perante o serviço. Ficam, por vezes, exaustos, governantes e empregados de mesa, mais a destrabalhar do que a trabalhar. No entanto, O’Neill, à cautela, preferia que o seu burocrata destrabalhasse do que trabalhasse. Não estaria habituado ao trabalho alheio. O país, mesmo sem o O’Neill para nisso reparar, continua a destrabalhar com imensa convicção e proficiência, diga-se.

E porque raio é tanta gente distraída nos dias que passam?
Paradoxalmente porque está toda a gente imensamente concentrada ... em si mesma. Essa é a forma suprema de estar distraído com tudo o resto. Enquanto o Universo – e com ele o nosso passado – nos abre horizontes por força da tecnologia espacial, cada um de nós passa a fechar-se em si mesmo, no grão atómico que cada existência individual representa.
Não é estranho que a grande questão filosófica do sentido da vida se tenha evaporado tão facilmente da mente de cada um de nós, das discussões de final de noite? Quantas horas passávamos a discutir esse tema indiscutível? Apesar da inutilidade das respostas era a maneira de sairmos de dentro da nossa existência, para tentar perceber o nosso papel no gigantismo universal e temporal em que estávamos imersos. Hoje o universo é cada um. Hoje todos acham que podem desempenhar o papel principal, já que a incompetência não existe, existe apenas uma síndrome qualquer que a explica e justifica. E quando assim é não há Shakespeare ou Dostoievsky que aguentem, pois, as suas personagens secundárias exigem todas o papel principal. Uma chatice. E faz-se fila para que uma voz esganiçada nos dê respostas aos nossos problemas complexos, por 19€, enquanto as respostas (certas ou erradas) ficam submersas no nosso interior por preguiça, por destrabalho, por injustificável distração. Ou, tantas vezes, pela inqualificável preguiça de chatear um amigo nosso e lhe dizer: não estou nada bem. E conversar sobre isso, com ele, as horas necessárias. Sim, conversar, aquela exótica atividade humana em que um fala e o outro ouve e responde.

Imprimir Email