25 de abril sempre?

Fui apanhado pelo 25 de abril de 1974 na 4ª classe, ainda muito novo, com 9 anos. Com aquela idade não era suposto que me interessasse pela realidade política. No entanto, como tinha um

fascínio especial pela televisão – a pouca que havia-, fui sentindo, ao longo desses anos, uma extraordinária mudança nos conteúdos televisivos, especialmente a partir de 11 de março de 1975. As personalidades políticas fascinavam-me. Da tranquilidade sonolenta de Marcello Caetano, nas Conversas em Família, passei a olhar com esbugalhada surpresa para um conjunto de personalidades militares exóticas que enchiam os noticiários com declarações bombásticas, perante os comentários horrorizados da minha família. Otelo, Rosa Coutinho, Vasco Gonçalves, faziam parte dessa fauna revolucionária sem qualquer espécie de freio. Embriagados pelo poder que tinham e por aquele que, achavam, ainda viriam a ter mais.
O país do respeitinho é que é bonito (de O´Neill) havia-se transfigurado, aos meus olhos de criança, num laboratório de experiências revolucionárias. Do oito passara-se para o oitenta. Na vertigem de uma mudança tão radical, nos discursos e na sensação que eles causavam, houve gente que se deu ao trabalho de enfrentar uma vaga que pretendia transformar Portugal, num clima mundial de guerra fria, em mais uma ditadura comunista. Mário Soares foi, provavelmente, o homem fundamental na razão que então se esperava, pois, sendo um homem claramente de esquerda, um resistente à ditadura, havia alguma dificuldade que a comunicação social, manietada, o apelidasse de fascista, como, aliás, era prática comum a quem se atrevesse a não concordar com o rumo “revolucionário”. Ainda hoje restam resquícios dessa retórica de pacotilha. Na frase citada em cima, Mário Soares e os seus apoiantes enfrentam barragens militares que pretendiam tornar um fiasco o comício do PS na Fonte Luminosa, em Lisboa, procurando intimidar quem lá se deslocasse. O mesmo tinha acontecido, no dia anterior, no Porto, sem sucesso para os boicotantes.

Toda aquela retórica política me causava então fascínio. Ainda hoje me causa a memória, já desbotada, dessas palavras e da coragem em as dizer. Discutir ideias políticas era uma coisa realmente nova. Francisco Sá-Carneiro foi, por essa altura, e igualmente, uma personagem fundamental, atravessando caminhos tortuosos no seu PPD, enfrentando golpes internos e ataques externos com a estoicidade própria de quem acredita que Portugal tinha possibilidades de se tornar um país verdadeiramente europeu. Convivo assim, hoje, muito mal com a dificuldade que o PSD por vezes enfrenta em ser claro relativamente ao Chega, sequestrando-se voluntariamente nas meias palavras dos seus líderes. Há dias foi finalmente claro, espero que não tarde demais. A política é, sem dúvida, a arte do compromisso. No entanto, é preciso entender e fazer entender, que o preço de um compromisso não pode pôr em causa as ideias fundamentais de um partido político. Mais vale perder com dignidade, do que ganhar com habilidade. A dignidade perdura e resgata, nem que seja mais tarde. A habilidade é pueril, não dura, sabota-se no poder que conquista com enorme e brutal facilidade.

Admito que haja pessoas que não dão valor à liberdade e à democracia que o 25 de abril proporcionou. Admito ainda que o caminho que os partidos democráticos fizeram para a integração europeia de Portugal seja visto por muitos, não como uma oportunidade para Portugal melhorar do ponto de vista das suas liberdades cívicas e políticas, da qualidade da sua democracia, mas apenas como um pote de ouro que é preciso sacar, e rápido, antes que acabe. Admito que haja quem não dê valor a que se possam exprimir, num jornal, ideias como estas sem que nos vão bater à porta para pedir satisfações do que se pensou, do que se escreveu, e se vá preso por isso. Admito, com tristeza, que o crescimento dos extremismos em Portugal não dependa apenas da corrupção vigente, mas da existência de um albergue real e oportuno para pessoas cujos dias se alimentam do ressentimento, do ódio ao outro, que existem (sempre existiram) e têm agora a sua voz. E isso é, também, democracia.

Agora o que admito igualmente é que o país teve ao longo da sua caminhada em democracia muitas e importantes conquistas, com base em muita gente capaz que ao longo dos anos o soube servir. Com erros, é certo, mas, a maior parte do tempo, com sentido de serviço à causa pública. Mas, infelizmente, com importantes exceções. Para mim o verdadeiro – e mau – ponto de viragem no longo trajeto democrático foi José Sócrates. Ele foi – e ainda é hoje – a prova viva de que a mentira compensa, um monumento vivo à capacidade em manietar a Justiça através dos mais elaborados expedientes, de aproveitar as suas falhas e indecisões, a sua tibieza, e isso constitui uma bomba-relógio sempre pronta a estourar com os valores e convicções em que uma democracia como a nossa se baseia. É só olhar para o lodaçal em que este governo se transformou. É mentira atrás de mentira, mas – pior de tudo – a falta de vergonha com que se mente repetidamente. O Galamba, o Pedro Nuno, aquele ex-secretário de estado de ar moderninho, são o produto perfeito de um socratismo que ainda não morreu e que não afeta apenas o PS, pois é moda e dá resultados para os seus inúmeros praticantes. O que é preciso é ter lata e nunca se envergonhar. A vergonha é algo que nos faz parar, que nos faz refletir, que nos faz amargurar por coisas que fizemos. Quando não se tem vergonha, tudo é possível, tudo é alcançável.
O 25 de abril perdurará se houver gente, com diferentes convicções políticas, a perceber que a liberdade, a justiça social, a democracia são valores inalienáveis. E será sempre assim? Não sei. Isso dependerá do que cada um de nós estiver disposto a fazer. No fundo a democracia só funciona se quem a sustenta estiver vigilante e ativo com os valores fundamentais de uma sociedade aberta e democrática e não preocupado com a atenção que pessoalmente se tem nas redes sociais. E não estou a falar dos adolescentes: estou a falar de mim, estou a falar de si.

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