Desinvenções

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Há tempos deu-me para aprender a cozinhar e, até agora, o que aprendi foi aquilo com que quase toda a

gente nasce já ensinada. Desforro-me apetrechando-me com utensílios menos comuns que considero poderem vir a ser úteis, facto de que resulta o desabamento sobre mim de ironias várias, umas por palavras ditas, que são as mais suportáveis, outras, silenciosas mas verdadeiramente traumatizantes, que são as que se adivinham nos sorrisos maliciosos que me são dispensados e, para agravar a humilhação, na companhia de trespassantes olhares de canto.
Por vezes, porém, lá chega a hora em que os meus silenciosos mas queridos detratores acabam por se render à efetiva utilidade do apetrecho que, até então, não passava de objeto puramente exótico.

Aconteceu isso, por exemplo, quando adquiri uma traquitana para segar plantas aromáticas, tais como salsa ou coentros, dita cuja consistente em uma espécie de tesoura com várias lâminas, a qual, se usada adequadamente, em poucos e fáceis golpes corta em miríades de bocadinhos toda a folhagem da apaladante ervinha.
A primeira vez que a usei perante os meus descrentes críticos, renderam-se eles à eficácia do instrumento, se bem que não, como deveria ser, em constritos pedidos de perdão, mas sim apenas mediante novos, mas bem evidentes sorrisos, não tanto de arrependimento mas sim, dificilmente estou enganado, de alguma inveja por tão rara e ocasional previsão de utilidade saída de um cérebro que, considerando o reduzido diâmetro do meu crânio (56 é a minha medida de chapéu), dificilmente deixaria adivinhar semelhante capacidade.
A tal espécie de tesoura faz-me lembrar um instrumento idêntico a que a minha avó dava uso; com um cabo como de alicate, na parte da frente tinha, não apenas duas pontas achatadas, mas sim seis, três de cada lado, de secção quadrada, as quais, ao acionar-se o cabo, cruzavam entre si. E para que servia a coisa? Não é explicação que possa dar-se em duas palavras.
Na casa em que fui criado, a certa altura, avô, avó e tias aí residentes, tudo usava dentadura postiça.
Acontece, porém, que, à exceção do meu avô, que nunca vi despojar-se das próteses (superior e inferior) senão à noite, ao deitar, era habitual as demais darem frequente descanso às gengivas, desde que não houvesse ou não estivessem previstas para breve visitas. Aliás, neste último caso, por vezes o descanso só terminava já com os passos do ou da – normalmente da – visitante a soar na proximidade do aposento onde o convívio decorreria, caso em que o sorriso de acolhimento tinha sido, apenas segundos antes, devidamente adornado.
Ora, sendo as dentaduras (lembro os mais novos que, naquele tempo – expressão esta de conotação bíblica que, dado o longínquo então em que tal acontecia, aplico como se fosse para ser lida num futuro não menos distante – nem pela imaginação do mais sábio passava a possibilidade da implantação dentária), sendo as dentaduras, dizia, instrumento para ajudar a mastigar, dava-se a particularidade de a minha avó, para mastigar, retirar a dentadura, e metê-la ao bolso.
Comia de tudo. Mas certamente com menos sacrifício do que o que faria caso não procedesse como acabo de referir.
Eis, porém, que um dia se lhe deparou numa montra a dita espécie de alicate que, veio a ser esclarecida pelo dono da loja, servia para, digamos, amaciar os alimentos mais rijos, explicação bastante para o aparelho ter sido imediatamente adquirido e passar a ser peça de talher indispensável na envolvente do prato da minha avó, que passou a comer sem qualquer espécie de sacrifício.
Acontece, porém, que nem sempre, finda a refeição, as próteses retornavam ao órgão para que foram concebidas, pelo que não raro, ao ser sacado o lenço que, por esquecimento, também se encontrava no bolso acima falado, com ele saltava a dentadura, do que resultava ser eu, o de mais maleável corpinho na casa, coagido a apanhar, inclusive de sob os móveis, as peças unitárias com que a prótese fora construída.
Aliás, lá em casa volta e meia andavam dentaduras esquecidas nos mais variados locais, tanto visíveis como menos visíveis e prováveis, o que me granjeou alguns croques (isto é um eufemismo) nas vezes, felizmente poucas, em que, após porfiada procura, se descobriu que era no fofo sofá, sob mim próprio, que as dentições se encontravam ao desalcance da vista.
Sobre a matéria muitas mais curiosidades haveria a contar, como andarmos todos à procura de meia dentadura estando o seu utente com a outra meia devidamente acomodada no local próprio, etc, etc.
Apenas uma última explicação, para o uso que acima fiz da palavra desalcance; não é completamente inventada, mas sim inspirada na definição que, na Guiné-Bissau, se fez do General Spínola.
Lá diziam ser ele “o desinventor da lente de contacto”.

Guimarães, 03 de março de 2020
António Mota-Prego
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