Hélder Silva Lopes: "A ciência cidadã poderá ajudar na preparação e adaptação perante as alterações climáticas"

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Duas semanas após as trágicas inundações registadas em Valência, o geógrafo Hélder Silva Lopes alerta para a vulnerabilidade existente em várias zonas de Guimarães em que um fenómeno como a "DANA" poderia ter igualmente consequências desastrosas.
Docente na Universidade do Minho, Hélder Silva Lopes fez uma tese de doutoramento sobre a relação entre turismo e alterações climáticas, liderando na qualidade de investigador em vários projetos internacionais, privilegiando metodologias como o recurso a técnicas participativas e como a ciência cidadã poderá ajudar na preparação e adaptação perante as alterações climáticas.

O Comércio de Guimarães (CG): Poderá um fenómeno natural extremo como a depressão isolada em níveis altos (DANA) afetar a região Norte de Portugal, incluindo o Vale do Ave e Guimarães?

Hélder Lopes (HL): Em primeiro lugar, convém dizer que a designação de DANA foi estabelecida em Espanha nos últimos anos perante uma banalização do termo de “gota fria”, embora, na prática, o significado seja o mesmo.
A “gota fria” tem um comportamento único, que a distingue de outras tempestades que se formam sobre o Atlântico e se deslocam rapidamente.
Quando uma DANA se forma, tende a ficar estacionária, rodopiando sobre si mesma e concentrando a precipitação numa área limitada. Estes sistemas estacionários, ao contrário das tempestades atlânticas, podem ficar dias no mesmo lugar, aumentando o risco de inundações severas.
De facto, este evento extremo não é inédito na Península Ibérica. Fenómenos semelhantes ocorreram noutros anos, destacando-se os de 1982, 1987 e 1996, com precipitações acumuladas que ultrapassaram os 500 milímetros em poucas horas.
Embora não se possa, nem deva, culpar diretamente as alterações climáticas pela ocorrência de um evento específico como a DANA, o aquecimento do planeta faz com que o ar tenha uma maior capacidade de reter vapor de água, aumentando em média 6% a 7% de humidade por cada grau de aquecimento.
No caso da recente DANA, a temperatura da superfície do Mediterrâneo estava significativamente acima da média, favorecendo uma maior evaporação e uma maior disponibilidade de humidade na atmosfera.
Não podemos, além disso, descurar aqui que a geografia desempenha um papel crucial na severidade dos impactes de uma “gota fria”. Em regiões como o Sul e o Leste da Península Ibérica, onde estas depressões são mais comuns, a combinação de montanhas e vales estreitos pode amplificar os efeitos da precipitação intensa, concentrando o escoamento em áreas urbanizadas e de baixa altitude. A situação é agravada pela forma como o território é ocupado.
Em Valência, por exemplo, a urbanização das ramblas, que são leitos temporários de rios, resultou numa exposição direta aos riscos de cheias, tornando a área especialmente vulnerável a fenómenos extremos.
Também é um facto que embora as “gotas frias” sejam mais frequentes no Sul e Leste da Península Ibérica, a possibilidade de ocorrerem episódios de chuva intensa e concentrada no tempo no Norte de Portugal não pode ser descartada.
O Minho, região que inclui o Vale do Ave e Guimarães, em particular, é conhecido por apresentar elevados quantitativos de precipitação, sobretudo durante o outono e inverno. A configuração da precipitação no Norte de Portugal é distinta da do Sul, mas as chuvas intensas podem causar problemas semelhantes, especialmente em áreas mais vulneráveis. A região é marcada por uma topografia acidentada e por bacias hidrográficas densas, como as dos rios Ave, Selho e Vizela, que atravessam áreas urbanas e rurais, que podem ultrapassar a capacidade de resposta local.

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CG: Existem indicadores sobre o número de pessoas que residem em zonas de risco em Guimarães?
HL: Sim, existem dados concretos sobre a vulnerabilidade de áreas residenciais e infraestruturas no concelho de Guimarães, indicados inclusive no Plano de Ação Climática, apresentado no início de 2024. De facto, o concelho possui diversas áreas identificadas como de risco elevado, particularmente nas margens dos rios Ave, Selho e Vizela, onde a ocupação urbana invadiu, ao longo dos tempos, os leitos de cheia.
Em São Torcato, Urgezes e na Zona de Couros, são frequentemente afetadas habitações, infraestruturas e equipamentos coletivos, como escolas e comércio local.
O número de residentes expostos a inundações em Guimarães é particularmente significativo, estimando-se que aproximadamente 10% da população residente se encontre em zonas inundáveis. De qualquer modo, uma noção de risco é dada por algumas infraestruturas e equipamentos críticos, como a Pousada da Juventude, o Parque de Campismo das Taipas e vários edifícios de património cultural (exemplo de Lápide das Taipas, as pontes de Serves e do Rio Ave, a Igreja e Oratórios de Nossa Senhora da Consolação e Santos Passos, a Casa e Quinta de Minotes, a rua D. João I, a Igreja de São Francisco, a Casa de Carneiros, o Conjunto das Antigas Fábricas de Cortumes e o Solar e Quinta de Carvalho D’Arca), que também estão localizados em áreas vulneráveis. Esta exposição elevada é um reflexo da urbanização e da ocupação do território ao longo de décadas.

CG: A previsão meteorológica atual permite antecipar este tipo de fenómenos e proteger pessoas e bens?
HL: Em boa medida, sim. A tecnologia atual permite uma previsão mais precisa de fenómenos como a DANA, mas a capacidade de resposta prática ainda enfrenta desafios, tal como se sucedeu na resposta em Valência.
Em Portugal, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) utiliza modelos de alta resolução e sistemas de satélite que permitem monitorizar padrões meteorológicos que indicam a formação de depressões isoladas. Outros websites, tal como a Meteored, para o qual colaboramos, também têm hoje sistemas de alerta com base em modelos muito fidedignos e que podem antecipar a resposta. Estes modelos conseguem prever com antecedência episódios de precipitação intensa, às quais as entidades competentes apenas têm de garantir que os alertas que são comunicados à população através de SMS, comunicados televisivos e redes sociais.
No entanto, a experiência recente, mesmo no caso português, como nas cheias de janeiro de 2023 em Lisboa, mostrou que, embora a previsão meteorológica seja precisa, a resposta prática ainda é limitada.
Muitos sistemas de drenagem urbana não estão dimensionados para lidar com volumes de água tão extremos, às quais se junta a ausência de limpeza de sarjetas, bem como a coordenação entre autoridades locais e serviços de proteção civil tende a ser insuficiente.
De qualquer modo, alguns municípios estão a criar sistemas eficazes que poderão garantir uma boa resposta, do qual Guimarães se constitui como bom exemplo. Neste caso, a empresa municipal Vitrus Ambiente tem feito esforços para limpar e desobstruir linhas de água, mas estas medidas preventivas podem não ser suficientes perante uma precipitação de magnitude comparável à ocorrida em Valência. Em Guimarães, as bacias de retenção implementadas para mitigar o risco de cheias têm ajudado, mas a expansão urbana e a ocupação inadequada de terrenos ribeirinhos continuam a ser um problema crítico. Uma DANA com características semelhantes à recente em Valência poderia provocar cheias rápidas e danos significativos em infraestruturas e áreas residenciais.

CG: A ocorrência de fenómenos extremos com consequências tão catastróficas surge em resultado das alterações climáticas? Será o resultado da forma como o Homem ocupa/ordena o território a principal causa das consequências graves?
HL: As alterações climáticas desempenham um papel fundamental na intensificação e aumento da frequência de fenómenos meteorológicos extremos, como a DANA. O aquecimento global está a elevar as temperaturas médias da superfície dos oceanos, incluindo o Mediterrâneo, o que amplifica a evaporação da água e aumenta a quantidade de vapor disponível na atmosfera. Este excesso de humidade potencia a formação de sistemas de baixa pressão intensos, o que resulta em chuvas torrenciais.
No entanto, é importante reconhecer que as alterações climáticas não são a única explicação para a severidade dos impactes. A forma como os territórios são ocupados e planeados, muitas vezes ignorando as características naturais e os riscos hidrológicos, contribui significativamente para agravar os efeitos destes fenómenos. Em Valência, por exemplo, a urbanização desordenada nas áreas de rambla (rios temporários) e a construção em leitos de cheia aumentaram a vulnerabilidade das novas áreas urbanas, amplificando potenciais impactes adicionais. Não podemos nunca esquecer que a água tem a sua própria reminiscência, tendendo a seguir em situações de precipitação extrema os cursos naturais.
Portanto, com uma ocupação inadequada e o planeamento deficiente do território agravam-se os fatores críticos que amplificam as consequências de fenómenos naturais extremos. Em Portugal, a pressão para construir em áreas ribeirinhas e leitos de cheia levou a um aumento da vulnerabilidade, especialmente em áreas urbanas. A construção de infraestruturas em terrenos de elevada permeabilidade, como nas margens do rio Ave, reduz a capacidade de infiltração da água e aumenta o escoamento superficial, resultando em inundações rápidas. Além disso, o Vale do Ave, atravessado pelos rios Ave, Selho e Vizela, é, aliás, uma zona de alto risco para inundações devido à sua topografia e ao elevado grau de impermeabilização dos solos.
Mas, veja-se o exemplo de Valência. Após as grandes cheias de 1957, o "Plan Sur" desviou o curso do rio Turia para um novo canal artificial, protegendo a parte norte da cidade. No entanto, as áreas urbanizadas a sul, onde as ramblas desempenham um papel essencial na drenagem, foram desenvolvidas sem considerar os riscos de cheias, levando a inundações catastróficas durante a DANA, que assolou na passada semana. Este caso demonstra que, mesmo com grandes obras de engenharia, o desrespeito pela dinâmica natural dos rios e pelos leitos de inundação pode ter consequências desastrosas.

CG: A Capital Verde Europeia, Valência, enfrentou inundações catastróficas. Que lição devemos retirar deste episódio?
HL: A situação em Valência, apesar de ser Capital Verde Europeia em 2024, mostra que a sustentabilidade urbana é um objetivo dinâmico que exige uma abordagem integrada e adaptativa. As distinções e os investimentos em infraestruturas verdes não são suficientes se o planeamento territorial não tiver em conta a resiliência face a fenómenos climáticos extremos. A principal lição é que as cidades precisam de adaptar as suas estratégias de sustentabilidade, integrando medidas de mitigação de risco, soluções baseadas na natureza, como a renaturalização de rios, a criação de zonas de retenção de água, potenciando a criação de “cidades-esponja”, que já fazem parte do planeamento nas cidades chinesas e que agora começam a ser introduzidas no continente europeu.
Valência implementou grandes projetos de infraestruturas e equipamentos, como o Parque do Turia, que renaturalizou o antigo leito do rio, mas a urbanização em áreas de risco continua a ser um problema crítico. Portugal pode aprender com este exemplo e investir numa abordagem de planeamento territorial que respeite as dinâmicas naturais e integre medidas de adaptação
robustas.

CG: Que fenómenos naturais associados às alterações climáticas podem afetar a vida e a organização do território na zona Norte de Portugal?
HL: Na região Norte de Portugal, os fenómenos naturais mais comuns exacerbados pelas alterações climáticas incluem as chuvas torrenciais e inundações rápidas, que afetam principalmente áreas urbanas impermeabilizadas; as secas prolongadas, que reduzem a capacidade de infiltração dos solos e aumentam o risco de incêndios florestais; as ondas de calor, que são cada vez mais frequentes e afetam a saúde pública e a produtividade agrícola; e as tempestades de vento e granizo, que podem causar danos significativos nas infraestruturas e nas culturas agrícolas.
Estes fenómenos representam desafios contínuos para a gestão e ordenamento do território, exigindo uma adaptação dinâmica e uma abordagem proativa. A este respeito, temos neste momento em execução dois projetos de investigação que procuram ajudar a lidar com a influência destes fenómenos (o NATURBAN-Norte: Promoção da Resiliência Climática e Sustentabilidade em Destinos Turísticos Urbanos através de Soluções Baseadas na Natureza na NUTS II Norte e o WEAQ-TourPor – o impacte das condições climático-meteorológicas extremas e da qualidade do ar no comportamento espaço-temporal dos turistas em ambiente urbano).

CG: As alterações climáticas exigem um maior investimento em educação ambiental?
HL: Sim, a educação ambiental é essencial para aumentar a resiliência das populações face aos riscos climáticos. A falta de uma cultura de risco na sociedade portuguesa, especialmente entre a população adulta e idosa, aumenta a vulnerabilidade. Investir em programas de sensibilização e educação para todas as faixas etárias pode ajudar a preparar melhor as comunidades para lidar com fenómenos extremos, promovendo comportamentos preventivos e aumentando a capacidade de resposta.
Do mesmo modo, a preparação para futuros eventos de “gota fria” exige uma abordagem integrada que combine previsões meteorológicas, o ordenamento territorial consciente e medidas de adaptação robustas. Em Portugal, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) já utiliza modelos avançados para prever a formação de depressões isoladas, mas é fundamental melhorar a capacidade de resposta das infraestruturas locais e educar a população sobre os riscos.
Além disso, medidas como a renaturalização de ribeiras, a criação de zonas de retenção de água, a restrição de construção em leitos de cheia ou a construção de cidades-esponja são essenciais para reduzir a vulnerabilidade das áreas urbanas.

CG: Qual é o desafio para um geógrafo ao lidar com fenómenos climáticos extremos divergentes?
HL: O desafio para um geógrafo reside nas análises da variabilidade climática, na necessidade de desenvolver estratégias adaptativas para lidar com fenómenos extremos tão divergentes, como secas e chuvas torrenciais, que podem ocorrer numa linha temporal curta. Estes eventos exigem uma abordagem interdisciplinar, integrando conhecimentos de climatologia, hidrologia, ordenamento do território, da população e território e utilizando ferramentas avançadas de SIG para mapear riscos e planear intervenções eficazes. A integração de metodologias participativas e de ciência cidadã é fundamental para fortalecer a resiliência das comunidades e promover uma adaptação ainda mais eficaz.
Num trabalho recentemente publicado por nós (acessível no link https://doi.org/10.1016/j.socimp.2024.100093), demonstramos a importância da colaboração interdisciplinar e da utilização de métodos participativos para lidar com os desafios impostos por fenómenos climáticos extremos, envolvendo toda a comunidade, inclusive os alunos, na produção de conhecimento e informação que oriente comportamentos e ações. Neste estudo, argumentámos que a abordagem colaborativa é crucial para lidar com a complexidade e imprevisibilidade dos eventos climáticos extremos. O artigo explora, grosso modo, como a ciência cidadã e a participação comunitária podem ser integradas na análise espacial e no planeamento adaptativo, oferecendo uma visão sobre como estratégias de coprodução de conhecimento podem ser aplicadas.
A investigação mostrou que, ao trabalhar diretamente com as comunidades locais, inerente ao conhecimento “leigo”, é possível recolher dados qualitativos muito importantes, que complementam as análises quantitativas e melhoram a capacidade preditiva dos modelos. Também, ao envolverem-se decisores políticos, conseguimos desenvolver soluções mais adequadas ao contexto local, promovendo uma adaptação mais eficaz. Esta abordagem colaborativa não só fortalece a confiança entre cientistas e comunidades, mas também facilita a implementação de medidas de adaptação que são aceites e apoiadas pelas populações locais.
Assim, pensamos que o desafio para um geógrafo não é apenas técnico, mas também social e ético, exigindo uma perspetiva integradora que reconheça a interconexão entre o ambiente físico e as dinâmicas humanas.

*Entrevista a publicar na edição de 13 de novembro do jornal O Comércio de Guimarães.


Marcações: UMinho, Departamento de Geografia, Hélder Silva Lopes

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