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    Os acossados

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    Todos passamos por um acontecimento extraordinário, a pandemia de Covid-19, o que levou a que cada um de nós - e também os governos -, adotasse procedimentos novos

    e fizesse um conjunto de reflexões que ninguém, até então, tinha experimentado ou pensado.
    Se os governos, especialmente no espaço europeu, estiveram à altura de um desafio novo e extraordinariamente complexo, pondo em marcha mecanismos que minoraram as dificuldades de muitos cidadãos em enfrentar a situação, ao nível individual o acontecimento deixou marcas claras e duradouras. A solidão e o medo marcaram definitivamente muitas pessoas, induzindo ou agravando muitas questões complexas do foro neurológico. Mas, em minha opinião, o mais risível de tão estranho acontecimento foram as juras individuais de se dar mais atenção à vida própria e à vida de outros, ambas as preocupações obliteradas, na rapidez de um fósforo aceso, pelo regresso à “normalidade”.

    Reli, a este propósito, um pequeno e extraordinário livro de filosofia, A Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul Han. Nascido em Seul, na Coreia do Sul, o filósofo estudou na

    Alemanha e na Suíça, tendo passado por várias universidades nesses países (Friburgo, Munique,Basileia), estando ligado, na atualidade, à Universidade de Artes de Berlim.
    No livro, o autor germano-coreano defende que a entrada no século XXI estabelece um tipo de fronteira entre a época bacteriana (a era da negatividade) e uma nova época centrada no excesso de estímulos ao indivíduo (a era da positividade).
    Segundo ele, a humanidade conseguiu, através da ciência, combater com eficácia os agentes patogénicos que nos ameaçam a saúde (há um inteligente e curioso paralelo com a Guerra Fria, ao nível político: o inimigo como agente patogénico), sendo, a partir daí, a grande ameaça ao indivíduo o excesso de “estímulos positivos” que provocam, em muitos casos, ansiedade e depressão.

    O que é, para mim, verdadeiramente extraordinário é que as melhores ideias, na Filosofia, na Física ou na culinária, são, geralmente, as mais simples.
    Olhando para os dias de hoje, olhando para a forma absolutamente irracional como muitos de nós foram perdendo a sua individualidade e a sua privacidade, de forma tonta diga-se, para receber das redes sociais uma aprovação ao que se pensa, às férias em Ibiza, ou ao cão que se passeia, através de uma plateia exterior, condiciona o sentido da existência a um conjunto amorfo e indistinto de opiniões. As redes sociais têm coisas positivas. Tanto assim é que as usamos. No entanto, a rapidez e a pressão que elas exercem sobre o indivíduo, quer em relação às coisas que ele diz e faz, quer em relação aos padrões de comportamento, ou de beleza, que o indivíduo julga como ideais, é que constitui o verdadeiro descalabro.

    A praga de problemas neurológicos (depressões, burnout, hiperatividade, etc) na era da positividade, do contínuo estímulo que vem do exterior, das notificações constantes, a que se junta a rapidez ditatorial do e-mail, ou a pressão para se ter ou ser de uma determinada forma, tem transformado a população mundial, e em especial os mais jovens, numa espécie de acossados. Veja-se por exemplo como essa forma de ser e estar condiciona a política. Há bem pouco tempo perdeu-se tempo e inflamaram-se discursos, por um indivíduo ter dito que os turcos são preguiçosos. Que importância isso tem para a nossa política doméstica? Nenhum, além de recentrar sempre o acontecimento político num mesmo indivíduo e nos disparates que ele profere, de forma propositada para o manter no centro da discussão. Isto vai de encontro a uma velha máxima: não interessa que falem mal ou bem de mim, o que interessa é que falem. Não interessa lançar temas profundos e estruturantes para o nosso futuro, o que verdadeiramente importa é lançar temas (mesmo que ridículos) para provocar um conjunto significativo de reação unívocas: concordantes, ou não.

    Há uma parte interessante no livro em que o autor nos compara, nos dias de hoje, aos animais selvagens, sempre em permanente estado de alerta. Os animais estão sempre atentos para não serem devorados pelo predador, ou, em sentido inverso, para devorar a presa. Os animais, como nós por estes dias, revelam uma absoluta incapacidade para a contemplação. E essa única e distintiva capacidade dos humanos: para ouvir uma música, para ler um livro, para contemplar tranquilamente uma paisagem sem a ter que fotografar e partilhar, para amar alguém. É isso o que nos distingue do resto da fauna e é precisamente essa capacidade contemplativa que nos deveria motivar a cultiva-la e a defendê-la.


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