“0NCE UPON A TIME”

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A verdade é que foi uma vez um regenerador que, na peugada de Francisco de Assis, cria acreditar que a biosfera era una e um todo em que as partes

se processam linearmente por
princípios de complexização. Contrariando, de alguma forma, o sentir generalizado daquela espécie animal que nela se pensa o topo da evolução. Isto porque, para todo o decurso do tempo e nos singulares espaços da evolução da matéria neste nosso planeta, a realidade parecia apresentar um desenvolvimento assente em princípios encadeados que, aparentemente e para a sua progressão, pressupõem confrontação. Dialética esta que comandou parte do saber humano dos derradeiros séculos; mormente a cultura, e a vida, no ocidente. Mas que conflitua com a sequencialidade consequente do processo material, em que tudo tem a naturalidade una da sucessão linear de singularidades igualmente essenciais e concatenadas.

Jorge Mário, filho de Mário José, emigrante piemontês e de Regina Maria, neta de emigrantes (ele piemontês e ela lígure), veio ao mundo no encerrar do ano de 1936, em Buenos Aires; onde seus pais haviam casado e viviam no Bairro de Flores. Nesse local passou a sua infância e juventude, com a normalidade de qualquer outro jovem daí e do seu meio, tendo feito estudos de química. Posteriormente, aos vinte e um anos ingressou na Companhia de Jesus (fundada por Inigo Lopez de Loyola no século XVI e que entre outras regas de conduta interna professava o “perinde ac cadaver”). Iniciado o ingresso, graduou se em Filosofia, depois em Teologia e posteriormente doutorou-se na Alemanha, tendo recebido a ordenação presbiteral em fins de 1969 e os últimos votos (em que se inclui o de obediência) em 1973. Dentro da Companhia foi professor, mestre de noviços e superior provincial, bem com reitor da Universidade de S. Miguel. E na hierarquia eclesiástica foi bispo auxiliar de Buenos Aires, arcebispo coadjutor e arcebispo metropolitano da mesma cidade, cardeal e, por fim, em 2013, ascendeu ao cume, como Bispo de Roma e Papa.
Até a sua ida para Roma viveu predominantemente na Argentina, que nesse período atravessou vários momentos de instabilidade política que, com vários golpes militares, do
peronismo à altamente repressiva ditadura militar (na lembrança dos inúmeros crimes desta e das “Madres de la Plaza Mayo”) e do que se lhe seguiu, adoeceram e crisparam aquela sociedade sul americana.
Entretanto e jesuíta, abraçou o projecto de vida cristão, no individual e no seu se ser colectivo, o que, com os estudos que fez e a sua actividade docente, o acreditava como uma pessoa com uma preparação ideológica superior; mormente no conhecimento dos Evangelhos. E na medida em que estes valoram os desfavorecidos e frágeis, não é de admirar a sua
propensão para se acercar dos “pobres” (melhor dizendo dos necessitados e marginalizados pelo sistema); na possível rememoração do que Jesus respondeu à pergunta do “jovem
rico” (que lhe afirmara ter cumprido todos os mandamentos e queria saber o que lhe faltava para ser perfeito), ao ensinar-lhe e pregar: “ ... vai, vende os teus bens, dá aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois vem, e segue-me. Tendo, porém, o jovem ouvido estas palavras, retirou-se triste, por ser dono de muitas propriedades. Então disse Jesus a seus discípulos: em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no reino dos céus. E ainda vos digo que é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha, do que entrar um rico no reino dos céus.” (Mateus, 19: 21, 22, 23 e 24).
Entretanto, também, esse projecto de vida cristão e católico, ao longo dos cerca de dois mil anos que leva, constituiu-se no principal elemento da coesão social das sociedades
europeias. Foi ele quem, através dos seus mandamentos, formulações éticas e doutrinas, orientou a conduta individual; quer através da punição das transgressões àqueles e àquelas,
quer, no caso que concerne da Igreja Católica, directamente, com intervenções que, da confissão à Santa Inquisição, do “Index librorum prohibitorum” ao para lelo “nihil obstat quominus imprimatur”, sem esquecer as visitações e outros meios pontuais, tentou controlar a sociedade.
Um salto e quanto a esta última afirmação, para a confirmar através do episódio bem conhecido do processo movido a Galileu Galilei (e do mortal contra Giordano Bruno),
que, após abjuração deste, terminou na sua prisão domiciliária para o resto da vida. E isto por ambos, ele e Bruno, pensarem que a realidade heliocêntrica proposta por Copérnico era a correcta e tal constituir uma heresia perante o geocentrismo bíblico (de a Terra ser o centro do Universo, à volta da qual giravam todos os astros).
De novo aterrados no discurso que se vinha expendendo, este exemplo mostra como o avançar do conhecimento foi desfazendo dogmas, ao mesmo tempo que a própria evolução da
sociedade se ia afastando de doutrinas cada vez menos consensuais e difíceis de impor, como, desde logo e no correr da História, as seitas, facções e as dissidências protestantes o
denunciam. Num, assim, calcorrear que nos foi aproximando do presente e num crescente desfasamento à realidade social. Isto porque a peregrinação da sociedade europeia, no seu cada vez maior conhecimento científico e, sobretudo, pela evolução dos costumes, foram tornando, no primeiro, mais difícil a fé e no segundo, a observância dalguns mandamentos e doutrinas. Isto, ainda, amplificado por uma estrutura organizativa anquilosada e aferrada a uma praxis tradicional, mais virada para ela mesma do que ao exercício da mensagem de Jesus, ou seja, a observar os evangelhos.
Foi assim que, pelo fim do século XIX, Nietzsche publicou o “Also sprach Zarathustra”, em que este personagem e descendo das montanhas onde estivera recolhido, encontrou, no bosque, um velho de cabelos brancos com quem se embrenhou em conversa e destoando da vida simples daquele, dedicada ao louvor à divindade, acaba por concluir para si, após deixar o ancião, que ele e na natureza já devia ter ouvido que “Deus já morreu!”. E depois entrando na cidade encontrou uma grande multidão a quem se dirigiu nos seguintes termos: “eu vos anuncio o Super-Homem” (o novo homem). Numa comunicação que pretendia apregoar a independência humana para com o sobrenatural. Um pronúncio dos tempos que se iam acercando.
Em qualquer caso e com antecedência, o progredir do antropoceno já tinha começado a provocar mutações no modo de vida. E sem estar a detalhar por demasiado estudadas,
denunciadas e conhecidas as causas dessa evolução dos costumes, a verdade é que o quotidiano tornava cada vez mais difícil a adopção plena do tradicional projecto católico de vida (e até cristão). Situação que se foi patenteando mesmo dentro da Igreja. E daí o Concílio do Vaticano II, que, perante os sinais dos tempos, levou João XXIII a convocá-lo através da Constituição “Humanae Salutis”. Só que, malgrado a grande importância desse concílio, ainda não estavam reunidas as condições para a total concretização do pretendido. Mas as sementes tinham sido lançadas e germinaram cinquenta e tal anos depois, desabrochando com Francisco. E à presente incógnita do que, após a sua morte, se seguirá? Em qualquer caso, Francisco, no seu posicionamento condicionado pela estrutura hierárquica existente e praticante evangélico, tentou ser um mais entre todos, numa abrangência profunda e mais consistente do que a paulista que se abriu para os gentios. Tendo, em conclusão e na igualdade, ido até aonde lhe foi concedido ir. Conceito igualitário que expressou tão bem e que deve ser entendido na máxima amplitude das particularidades que ocorram, no “todos, todos, todos”.
Um Papa, pois, com história e que sobressairá na História.

Fundevila, 7 de Maio de 2025


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