Da irracionalidade

No TINA ditatorial de um economicismo assente na rentabilidade a qualquer custo e numa altura em que a ideia de decrescimento tende a ganhar credibilidade,

e aceitação, não se
pode compreender como no planeamento territorial se insiste, em nome dum progresso questionável e falacioso, na continuidade da dispersão. Mitigada e programada, embora, que

ela possa ser nele encarada.

Isto porque, por um lado e na finitude do solo, quanto mais se o ocupar com utilizações que o desvirtuam da sua natural finalidade, menos se mantêm os ecossistemas que nele se verificavam e que eram, até há pouco tempo e em cada seu momento, os quase resultantes espaço-temporais do processo terrestre. Sendo ainda que essa progressiva ocupação também tem contribuído para alterar o curso normal desse processo, numa magnitude que tem sido crescente e que produz efeitos que, parece, concorrem para o adulterar substancialmente. Por outro lado, essas modificações do decurso da sequencial jornada do planeta parece que, igualmente, estão a afectar a nela da biosfera e, nesta, aquela parte que interage directamente com a homem e até a este. Razões de sobra para, numa simples lógica cartesiana, se questionar da racionalidade desse planeamento.

Antes, porém e para o que se vai prosseguir, torna-se oportuno criar a uma distinção entre as diversas formas que essas ocupações podem revestir, deitando, para tal, mão de um critério dicotómico que as classifique segundo distintas características. Assim e ara esse efeito devem considerar-se as que são meras infraestruturas físicas e as sociais que, estas e em si, não determinam propriamente ocupação, mas em que esta, no entanto, lhes está subjacente. E para melhor compreensão desta distinção, dir-se-á que com uma construção civil se faz uma infraestrutura física, enquanto que, por exemplo, com cuidados de saúde se efectiva uma infraestrutura social. Só que nos tempos que vivemos essa exemplificada infraestrutura social, nesta Europa, não é a única delas a exigir-se e muitas outras concorrerão para ocorrer a todas as necessidades do quotidiano das nossas sociedades (educação, segurança, administração, desporto, cultura, lazer e por aí adiante, num diversificado e vasto leque de estruturas e serviços). E só com esse conjunto de infraestruturas, físicas e sociais, se vão satisfazendo as exigências da nossa vida contemporânea, numa panóplia que no seu conjunto se pode considerar imprescindível. Universalidade de infraestruturas que, entretanto, se sediam em ocupações físicas mais ou menos centradas, mais ou menos próximas dos destinatários.

Ora sabendo, como sabemos, que, nos previstos três centos de milhares de anos que a nossa espécie leva neste seu solar, ela palmilhou de um estado rudimentar a um actual de apreciável conhecimento e domínio tecnológico, em que a qualidade da vivência atingiu níveis de bem-estar material que ainda há um século eram dificilmente imaginados (na sempre
relatividade das disparidades entre as diversas sociedades europeias e, nelas, entre as suas classes sociais e, depois, os diferentes estratos que as integram). Assim, dos instrumentos de pedra toscos aos trabalhados, da roda, das cerâmicas ao uso dos metais e ao motor a vapor, a evolução foi-se acelerando e o progresso foi de de tal modo que o homem, mero elemento do processo terrestre, passou a ser nele interventor, dando azo à que se pretenda estabelecer uma nova era geológica: a do antropoceno. Mas a história, longa história sempre a ser completada, está ao alcance de quem pretenda apreendê-la e não cabe aqui sumariá-la. Fique-se, pois, com a noção dessa trajectória.

Depois, no desenrolar do nosso, europeu, processo histórico, foi a crescente divisão do trabalho ... as especialidades. E aí os burgos tiveram uma primeira grande contribuição que, por neles afluir o aumento gradual daquela divisão (numa progressão que se pode dizer matemática), foram promovendo o conhecimento e desenvolvimento tecnológico que conduziram à revolução industrial. A partir da qual aquele aumento disparou e, sucessivamente, foram nascendo especialidades e subespecialidades que, algumas destas, rapidamente se autonomizaram. Dinâmica esta que provem, muito, do crescimento do conhecimento e das capacidades técnicas que também elas, as especialidades, possibilitaram e foram promovendo pelo apoio ao, e no, seu exercício. Aperfeiçoamentos todos esses potenciados pela propagação do conhecimento científico e competências tecnológicas que, ambos e neste século, têm progredido a uma velocidade estonteante e que, rapidamente, tem vindo a tornar obsoletas teorias e técnicas ainda ontem inovadoras. Num tudo que, em quase todos os campos, cada vez mais se reduz ao pormenor de um anterior genérico, num avanço que, quanto mais o é, numa inversão, mais reduz o número de carentes que abrange. O que, logo, faz antever a necessidade da concentração destes. 

Do anterior retenha-se que, na peregrinação humana, quanto maior é a divisão do trabalho e a pormenorização das especialidades, menos são os que delas precisam, ou as utilizam e daí a subsequente imposição de uma superior população relativa (densidade).
Dito isto, voltemos ao burgo europeu, ao seu desenvolvimento pela variedade de actividades que nele se foram concentrando e que o fizeram crescer, progredir e implementar um outro modelo autonomizado a que corresponde a noção actual de espaço urbano. Mundo urbano esse que se materializou em a “cultura urbana”. Cultura que se impõe à escala mundial e na qual se insere já mais de metade da sua população, com perspectivas de rápido e fortíssimo incremento. Convergência esta que, entretanto, ocorreu em menos de dois séculos e que se concretiza em cidades com milhões de habitantes e em megalópoles com dezenas deles, bem como os ainda maiores das áreas metropolitanas. E as altíssimas densidades populacionais que se atingem nesses espaços; em contraste com as baixas das zonas rurais e as médias da ocupação dispersa ou, até, das pequenas urbes. Fenómenos estes percetíveis, que os censos, e dados, confirmam e que tem levado ao abandono das zonas rurais, ou de aglomerados menos populosos (numa fala bem portuguesa as “cidades de província”). O que imediatamente suscita a interrogação da razão dessa crescente trasladação.

Resposta que, numa simplicidade que cremos nos será permitida, reduzimos à sua capacidade de atracção; sem se menosprezar, evidentemente, a expectável progressão reprodutiva das respectivas populações (hoje não assim tão evidente). Mas qual o motivo dessa atracção? Pensamos que a ânsia de uma melhor vida material (na similar lembrança dos migrantes que, muitíssimas vezes com altíssimo risco de vida e mesmo imensas mortes, por qualquer meio, tentam atingir a Europa, ou os países mais desenvolvidos dela; sem esquecer os nossos, portugueses, emigrantes e a saga que a partir de meados do século passado os levou a afrontarem as inerentes atribulações da sua ousadia e que, com outro molde, ainda
prossegue ou aconteceu no passado para o Brasil). Mas o que é essa melhor vida? Que esperança é essa que faz mover milhares de seres humanos numa busca quantas vezes frustrada? A explicação é complexa porque, individual e ainda que globalizada, vai desde o desejo de melhores condições económicas à própria fruição do lazer, num tudo caber nesse
caldeirão que engloba todas as actividades e campos da nossa vivência cotidiana. E em que, portanto, só a grande dimensão urbana pode propiciar altos níveis de diversificação e,
porventura, a qualidade de infraestruturas que possam satisfazer esses anseios no presente e diligenciem, ainda, um posterior seu acrescentamento.

Assim, na evolução positiva da espécie e na contemporaneidade, a realidade, e a miragem, das grandes urbes capta e arrasta para essas densas aglomerações humanas os que, fora delas, aspiram ao suposto bem-estar material que só elas, creem, lhes podem propiciar. E o próprio sistema fornece essa emigração, que é inerente à sua ideologia consumista. Se
bem que nem tudo sejam rosas sem espinhos nelas, pois as diferenças raciais, sociais e económicas, tem acentuado as desigualdades que por lá prosperam, a marginalidade, a
criminalidade e, inclusivamente, à desumanização; o que tem gerado teorias de urbanismo tendentes a superar esses aleijões (uma dos mais recentes, “a cidade dos 15 minutos”, de Carlos Moreno).

Em qualquer caso, a senda progressista da espécie nas sociedades desenvolvidas aponta para a crescente urbanização das populações que, através desses grandes e densos espaços, conseguem um máximo de satisfação das suas apetências materiais de consumo. Por o que, o rumar contra a maré, o prosseguir na dispersão, parece um contrassenso e na lógica dum pensamento sequencialmente consequente, uma irracionalidade, ou, se quiser e num expressar mais lhano, um verdadeiro bacoquismo.

Fundevila, 25 de Abril de 2024

NOTA: Por um lapsus liguae contido no original do anterior enviado para publicação, o que neste devia constar era DA POLUIÇÃO PAISAGÍSTICA e não, o como ia nele e foi editado,
DA POPULAÇÃO PAISAGÍSTICA


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