Eu é mais bolos
O comentador é uma praga que precisa, rapidamente, de medidas concretas da futura Sra.Ministra do Ambiente. Deixemos a praga das pombas, dos ratos, dos eucaliptos,
para altura apropriada. Esta – a praga dos comentadores – é uma urgência nacional!
E tudo começou pelo futebol, onde apareceram seres estranhos a comentar o nada, atingindo o paroxismo nos relatos (sem imagens) dos jogos de futebol na CMTV, havendo sempre um par de comentadores a comentarem o que ninguém vê. Mas, lentamente, alastrou para a política, e temos hoje comentadores a comentar o que anteriores comentadores disseram. A praga atingiu sem piedade toda a informação e condiciona todo o noticiário. Hoje uma notícia não abre os telejornais pela sua importância intrínseca, mas pelo grau de comentários que aditiva. A abertura de um noticiário da SIC com as tontas declarações do tonto Rui Gomes da Silva é, para já, o zénite da tontearia. Mas, temo, haverá mais: a notícia já não existe já por si própria, existe pelo que dela se diz no comentário. Seja através dos comentadores televisivos, seja pelos comentadores que no telemóvel, pouco smart, se afocinham acriticamente nas conversas de café, travestidas de política, que inundam as redes sociais.
Como qualquer praga dominante, ela arrasa com espécimes da mesma família que se adaptam de forma mais deficiente às condições do ecossistema. O comentador de esquina foi uma dessas espécies.
No tempo em que o comércio fechava a horas certas, reuniam-se nas esquinas da cidade machos entre os 20 e os 30 anos para comentar ninharias de ocasião, mas, sobretudo, para comentar as empregadas do comércio local. Quem namoravam, de quem eram filhas, quais as reais possibilidades de alguém da manada, através de um piropo mais atrevido, ter reais possibilidades de passar de comentador a comentado. No entanto, essa espécie tinha um horário fixo, normalmente das 18h30 até às 19h30, e hibernavam em tempos de chuva e de mau tempo. Essa sazonalidade e a liberalização dos horários do comércio matou a estirpe.
Outras vibrantes comentadoras, estas do sexo feminino, mas de idade mais avançada que os comentadores de esquina, eram as beatas. Elas eram ainda mais eficazes no debitar de informações umas com as outras, do que a rapaziada, já que o curto espaço entre o fim da novena e o início do terço assim o exigia. As suas conversas eram mais sussurradas, mas mais letais, já que, para elas, toda a gente andava metida com alguém, ou a tentar meter-se com alguém. Persignavam-se sempre a cada novidade diabólica, o que desenvolveu na espécie uma força de braços apreciável.
Desapareceram devido à crise de fiéis, mas, sobretudo, devido aos comentadores das redes sociais que as suplantaram largamente na verrina.
Uns e outros tinham, contudo, como agora se diz, as suas linhas vermelhas. Falavam apenas daquilo que julgavam conhecer, não se esticando para realidades que não dominavam. Havia ali uma espécie de ética profissional que se estendia também aos comentadores de filmes que, para desespero da plateia e do balcão, diziam que o artista ia morrer, antes de tal acontecer. Tinham, todos, o seu nicho de mercado e exploravam-no com particular competência. Agora não, todo o comentador tem opinião sobre tudo. Há, no entanto, um traço genético que perdurou, para os comentadores de hoje: a irrelevância da verdade para os factos que se comentam.
A forma mais eficaz de combater a praga atual é o silêncio. Os comentadores de base ou os políticos comentadores definham se não se lhes der importância. É difícil, mas é possível e, sobretudo, higiénico.
O Herman José, recente e justamente distinguido, anteviu a possibilidade do comentador total na sua brilhante personagem do pasteleiro José Severino, para o qual a incauta entrevistadora tinha apenas perguntas sobre radiotelegrafia. José Severino ia encaixando factos da sua vida profissional, na medida do possível, para responder a uma temática que desconhecia. Só que ele, mesmo na pueril tentativa, era fundamentalmente honesto: ele era mais bolos.