PAGANINIS – O NICCOLÒ e o ALMEIDA

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Porque gosto de música, passo algum tempo, diariamente, a desfrutar de peças musicais de vários géneros, desde o clássico ao jazz, passando pela música

dita ligeira; o principal critério para a escolha é o do meu próprio gosto que, podendo coincidir com a qualidade das obras, não serão, por vezes, obras da melhor qualidade as que mais aprecio e mais frequentemente ouço. Um pouco como acontece com o vinho; por costume não me pronuncio sobre a qualidade – matéria de entendido, que não sou – mas sim e tão só sobre o maior ou menor prazer que o que estou a beber me proporciona.
Porque alguém recentemente me falou do grande violinista Niccolò Paganini, que já me não lembrava de ter ouvido, tenho vindo a apreciar algumas das suas obras, muitas delas de uma dificuldade tal de execução que só muito poucos violinistas conseguem tocar.

Paganini tinha dedos anormalmente compridos e flexíveis, donde a extraordinária capacidade de dedilhação que faz com que tenha venha sendo considerado o melhor violinista de sempre.
Também compositor, se muitas das suas obras fazem jus simultaneamente à grande qualidade melódica e ao seu virtuosismo de executante, outras como que têm por finalidade a exibição das suas espantosas capacidades de execução, a ponto de me ficar a sensação de que em vez de ouvir uma obra de qualidade estou perante uma espécie de malabarismo musical.
Aliás isto acontece-me igualmente au ouvir determinadas peças tocadas ao piano, instrumento da minha predileção, já que é aquele que, apesar da minha mediocridade no teclado, consigo tocar de modo a satisfazer o meu impulso musical. Com efeito, não raro alguns pianistas de exceção, e até não tão excecionais quanto isso, enxertam na fraseologia melódica apensos somente destinadas à exibição malabar das suas capacidades enquanto executante.

Vem tudo isto a propósito de Paganini, o que tem Niccolò por nome próprio e, refiro desde já, que o que acabei de escrever “fugiu-me”, pois o que imediatamente me veio ao pensamento quando falei do Paganini violinista, foi um outro “Paganini”, cuja memória passarei a evocar, figura típica que só eu e o meu grupo de colegas conhecíamos como tal.
Será por isso que ele não consta do interessante livro, escrito pelos vimaranenses Armindo Cachada e Domingos Ferreira, e ilustrado com apropriadas pinturas do mestre Arménio Sá, intitulado “Os Senhores da Rua”.
Não consta esse como não constam outros típicos com quem, pelos meus vinte e poucos anos, praticamente só eu e meus companheiros de passeios noturnos, travávamos , algo surrealistas, nomeadamente aqueles que alcunhámos de “Ramsés” e “JM Quintanista”, o primeiro, alfaiate durante o dia, que fazia poemas à lua, o segundo, sem emprego mas senhor de digna subsistência, que terminava todas as suas curtas frases, e eram todas curtas, em “vel” – andável, comível, cheirável, ganhável, perdível, etc.
Mas em causa está o outro Paganini. Foi assim:
Nos meus últimos anos de liceal, algo após o início das aulas, aparecia na cidade um personagem, “idoso” a rondar os 50 anos de idade, que atraiu as atenções, minha e de alguns colegas com quem convivia. Baixinho, magro, impecavelmente vestido – luvas, fato preto, tal como o sobretudo, este com gola de veludo, camisa branca, gravata escura, corpo assente em sapatos de verniz, às vezes com polainitos, e encimado por chapéu igualmente preto, de aba revirada.

A sua expressão era sempre sorridente, olhos muito escuros e levemente franzidos, condizentemente com o ténue sorriso que permanentemente ostentava e lhe esticava um pouco o bigode finíssimo, nascente na columela, bem ao centro dos orifícios nasais, até à comissura dos lábios. Lembrada agora, vejo que a sua expressão fazia lembrar a da máscara Anonymus, adotada em muitas manifestações para ocultar a identidade dos manifestantes.

O seu porte era algo aristocrático; costas muito direitas, queixo levemente levantado, mãos com dedos entrelaçados na frente do corpo, girando leve e simultaneamente corpo e cabeça, como se não tivesse mobilidade cervical, assim varrendo o percurso que fazia.
Nós, jovens atrevidos, apercebemo-nos de que facilmente lhe chegaríamos à fala, e assim foi. Pouco loquaz ele, gostava de nos ouvir, sendo notório que apreciava o convívio connosco, pelo que começou a fazer, quase diariamente, percurso que sabia trazê-lo até nós, até porque nós passamos a frequentar o mesmo percurso, na expectativa, raramente gorada, de o encontrarmos.
Isto foi facilitado pelo facto de ele, que se apresentou como sendo o Almeida – eu sou o Almeida, foi a resposta quando o inquirimos pelo seu nome, sendo que nunca procurou saber o nosso nem decorar o nome de qualquer de nós, já que, como é natural, nos tratávamos uns aos outros pelos nomes respetivos. As palavras “tu” e “vós”, juntamente com a direção do olhar, bastavam-lhe para identificar o destinatário ou destinatários do, geralmente pouco, que tinha para dizer.

Logo de início o Almeida convidou-nos para lanchar, suportando e incentivando em nós os mais vastos e variados gostos e refinados apetites, donde, porque tudo nos pagava e várias despesas, sobretudo gastronómicas, nos propunha, apelidámo-lo de … Paganini. Passou a ser o Almeida Paganini.
O seu gosto era ouvir-nos nas nossas conversas de jovens e, quando lhe dirigíamos a palavra, respondia
simpaticamente com simples monossílabos, tais como “sim”, “não”, “talvez”, e sempre com a palavra “podes” quando lhe perguntávamos – Almeida, podemos pedir mais uns pregos e uns finos…
A frase mais extensa que frequentemente proferia era – Falais muito bem! Vós tendes cultura, eu tenho agricultura…
Chegou ao ponto de, dois dos mais velhos, repetentes e sabidolas, o terem convencido a leva-los de táxi ao Porto, onde passearam, lancharam, jantaram, foram ao teatro e, após este, fizeram incursão em casa de senhoras “experientes”, investida esta a que o Paganini se não associou, tendo, porém, habilitado os incursos com o valor devido e ficado ele, pacientemente, a aguardá-los num café próximo.

O Almeida era um pródigo e, ao procurarmos saber do seu desaparecimento após várias horas, em vários dias, de espera por ele nas locais do costume, viemos a saber que fora mesmo interdito por prodigalidade. Impedido do prazer de nos prazentear, o Almeida Paganini preferiu a reclusão doméstica.
Como nada mais sabíamos dele além do acima dito, para nós foi como se tivesse morrido e, quando morreu, sem dúvida terá subido ao Céu. Dos que usufruíram do Almeida, não sei se, além de mim, algum de nós ainda não está Lá a lanchar com ele. 


Guimarães, 07 de novembro de 2023
António Mota-Prego
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