Para além da miscigenação


Se se entende que a origem do Homo Sapiens que todos nós somos provem de África e, portanto, advém de um tronco comum, que, migrando, se foi

estendendo pela Terra e desenvolvendo características distintivas que a lógica darwiniana tende a explicar, não é menos verdade que os agregados humanos que se foram constituindo por milénios e fixações territoriais diversas, interpenetraram-se em razões de proximidades espaciais e, assim, os vários ramos coexistentes em regiões geográficas, foram-se cruzando segundo as, e várias, circunstâncias dos seus quotidianos.

Conhecimento acabado de escrever que, no seu desenvolvimento, conduz-nos a uma sequência matemática aplicável aos, de nós, encontrados 8.000.000.000 que aconteceram por estes dias: a da progressão aritmética (isto é, aquela sequência numérica que a partir do seu segundo termo é igual à soma do anterior multiplicada pela constante atribuída; ou seja an=a1+(n-1).r). Assim e sem remontar a mais longe no passado, ficando-nos por mil e quinhentos anos e digamos, por defeito, 50 gerações, deparar-nos íamos com mais de 6.000.000.000.000 avoengos para cada um de nós. E a multiplicar por aqueles 8 mil milhões, muitos mais do que e mesmo descontando as consanguinidades, possam ter existido desde os primórdios da espécie.
Certo!
Tudo, restringindo geograficamente, para a conclusão de que por esta Europa e sem irmos para além da alta idade média, facilmente muitos, senão praticamente todos, estaremos aparentados; por aqui ou por ali, por ascendências mais próximas ou mais distantes, ainda que muitas destas não sabidas. E por cá? Por este Portugal, ou melhor e começando, por este inicial Portu Cale?

Encaixado na Península Ibérica, na Hispania, na borda ocidental dela e confrontando com o oceano Atlântico, longe, afastado por conseguinte, duma comunicação directa com o Mar Mediterrâneo por aonde os contactos e as culturas se foram difundindo de forma crescente, uma outra agravante veio estreitar ainda mais o isolamento desta parte do Noroeste: a topográfica (sistemas central, cantábrico/galaico-duriense e suas extensões em direcção ao Atlântico ou descendente no derradeiro, com pendente acentuada e rios a correrem de E para W, com as respectivas bacias encerradas em relevos que fecham vales apertados e com apenas estreitas plainas adjacentes à zona marítima). Território esse com solos maioritariamente pobres, acidentado e de clima húmido.
Em todo o caso crê-se o habitado desde tempos remotos, pré e proto-históricos (o Côa pode, de certa maneira e pela relativa vizinhança, atestar uma existência e, por outro lado, segundo alguns estudos baseados na genética, os celtas teriam a sua origem por estas paragens; que teriam abandonado após a última glaciação e rumado a norte), embora a falta actual de dados não permita comprovar os povos e tribos que por aqui poderiam ter vivido por esses recuados tempos. Sabe-se que os celtas, já na cultura La Tène, invadiram a península há cerca de três mil anos e foram-se cruzando com os povos que já por cá estariam, dando origem aos celtiberos. Depois, os gregos, fenícios, cartagineses e magrebianos, frequentes nos bordos mediterrâneos peninsulares, também podem ter alcançado este longe setentrião; embora a sua influência na miscigenação deva ser fraca. Depois, claro, os romanos. E por falar em romanos, relembra-se o rapto das sabinas, prática guerreira que se acredita assaz comum. Mas, voltando a eles, aos romanos, esses sim, influíram nos cruzamentos étnicos. E por séculos foram instalando gente sua de diversas etnias por estes territórios conquistados e administrados. Sem se esquecer que, quando aqui chegaram, depararam com quem na altura os ocupava, os callaecus, bracarus e por ai fora. Povos que já se encontravam neste território e integravam a cultura castreja do noroeste. E é com esses povos e tribos que os conquistadores convivem durante séculos, até às invasões bárbaras (alanos, vândalos, suevos e visigodos) e depois, por algumas dezenas, pouquíssimas, de anos, os mouros (predominantemente berberes). E segue-se o pouco crível ermamento nesta zona (o problema na meseta superior é bem diferente), onde se acredita que, por a sua particularidade topográfica, alguns tenham podido permanecer, malgrado a política de terra queimada. Depois o regresso; as presúrias e migrações para um sul já seguro. Depois a reconquista, os que vem de fora ajudar ou tentar vida (como a menção dos francos aqui em Guimarães corrobora), os judeus e os moçárabes. Uma miscelânea de gentes, que avançam para sul e vão se misturando com os que, de várias etnias, já por lá estavam.

Uma referência particular aos lusitanos, mitificados no século XVI como se fossem maioritariamente a nossa ascendência. Crendo-se os provavelmente também celtiberos e sem ligação (?) aos lusi, ou lusones vizinhos dos arévacos, eram um povo do sul interior que se estendeu até ao sistema central ibérico, mas, provavelmente, muito pouco, ou nem sequer, para norte dele; independentemente da província romana que utilizou o seu nome ter como limite o Douro (como a da Gallaecia ia até à Cantábria).
Depois, sempre o depois, a corrida para o sul, Coimbra, Leiria, Santarém, Lisboa, Alcácer do Sal, Évora e por aí abaixo, Silves, Faro e a consolidação. Cruzados e outras ajudas, miríades de gentes e etnias. E ainda depois, mais tarde, o norte de África, a sua circunavegação, a Índia, o Brasil, o Sião, a Malásia, a China. Sempre e sempre, mais e mais cruzamentos. E os escravos e as recentes emigrações, primeiro para o Brasil, colónias e no século passado para e da Europa; as guerras. Uma salgalhada que não nos é própria e ocorreu um pouco por todo o lado, bastando para tanto atentar no actual problemão dos refugiados.

Tudo para se concluir que purezas étnicas e mesmo que localmente circunscritas, não passam de mitos, desfeitos, além da miscigenação atrás mais detalhada, pela mesma origem. Efectivamente, isso de que a espécie provém de Adão e Eva, tem um figurada veracidade. E não dá sequer para perguntar se primeiro apareceu a galinha ou o ovo; essa questão só admissível num raciocínio dialético mecanicista que a sequencialidade consequente, adstrita ao Big-Bang, não permite.
Assim e como é evidente, porque todos somos da mesma família humana, é difícil nesta altura tão atribulada continuar a compreender a desunião, o confronto, as guerras, a falta de vontade de atalhar as alterações climáticas e o mais que por aí anda (desigualdades incluídas); e o que, no entanto, só é decidido por alguns, pouquíssimos, impregnados de interesses que não são os verdadeiramente reais da humanidade.
É que, relembre-se o sempre, somos Fratelli Tutti.

Fundevila, 21
de Novembro de 2022


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